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Este texto reflete sobre a dignidade, a marginalização e o contraste entre os que seguem o sistema e os que vivem à margem dele, desafiando a ideia de pobreza e riqueza sob uma nova luz
CONTOS
5/4/20253 min ler
O modernismo e a velha tapeçaria das ruĂnas dançam num contraste de cores e texturas, fundindo-se numa simbiose entre o novo e o antigo que dĂĄ corpo e alma Ă Rua Alto VarejĂŁo. As paredes, impregnadas de histĂłrias, sussurram memĂłrias Ă queles que, hĂĄ anos, testemunham e sentem na pele a metamorfose de tudo ao redor â incluindo a sua prĂłpria. SĂŁo ecos de um tempo que se recusa a perecer.
Quando o sol se impĂ”e no cĂ©u, projeta sombras caprichosas sobre as fachadas, revelando a brutalidade com que os anos esculpiram estas muralhas â outrora lisas como a pele de um recĂ©m-nascido, agora rugosas, tatuadas pelas intempĂ©ries implacĂĄveis do tempo. Os passos ressoam ao longe, no mesmo compasso com que o dia desabrocha.
Da minha janela, observo os pais conduzindo os filhos Ă Escola PatrĂcio dos Prazeres, entre risos soltos e gestos de ternura e cuidado. Os meus olhos perdem-se numa cena familiar: uma mĂŁe africana acompanha dois meninos que, distraĂdos, dĂŁo pontapĂ©s numa garrafa de ĂĄgua, como se toda a infĂąncia coubesse naquele jogo; um pai, equilibrando o afeto e a rotina, carrega o filho num braço e segura a trela do cĂŁo no outro, navegando entre o amor e a responsabilidade; uma avĂł, de mĂŁos dadas com o neto, caminha com a serenidade de quem compreende que filhos e netos sĂŁo navegantes â um dia partirĂŁo para outros oceanos, mas o lar serĂĄ sempre o porto aonde voltarĂŁo, onde os prantos serĂŁo acolhidos e os abraços nunca negarĂŁo abrigo.
Quando, enfim, a rua parece render-se ao silĂȘncio, o latir dos cĂŁes irrompe entre as esquinas, preenchendo os vazios da manhĂŁ. No vĂ©u do horizonte, uma figura singular desponta: o homem dos cĂŁes, como Ă© conhecido entre a vizinhança.
NĂŁo hĂĄ pobre que eu mais inveje no mundo do que esse homem. Mas, ao escrever esta frase, questiono-me: quem de nĂłs Ă© verdadeiramente pobre?
Sou eu, acorrentado Ă s trelas invisĂveis do sistema, ou ele, que hĂĄ anos se insurgiu contra esta ditadura de direitos e deveres que a sociedade nos impĂ”e?
Vive entre as ruĂnas, onde, no quintal, fez florescer o mais improvĂĄvel dos jardins â brotam flores resgatadas do lixo da cidade, entre decoraçÔes quebradas que, sob suas mĂŁos, renascem em beleza. Ă uma arte de sobrevivĂȘncia que desperta inveja em qualquer um. Para saciar a sede, carrega bidĂ”es de ĂĄgua das velhas fontes que ainda resistem em Lisboa. Veste-se com roupas deixadas por almas generosas nos depĂłsitos urbanos. O pĂŁo de cada dia vem-lhe da igreja ao lado, onde a fĂ© e a fome se cruzam em silĂȘncio. E quando a necessidade Ă© mais feroz, senta-se na esquina com os seus oito cĂŁes, estende a mĂŁo e pede uma, duas, trĂȘs moedas.
HĂĄ dias em que a rua desperta em sobressalto, rompida por gritos que ecoam entre as paredes gastas, como se emergisse de um pesadelo. As palavras cortam o ar, carregadas do peso da ira e do abandono:
â Porra, caralho!
â Vai-te foder, merda!
â Deixa-me em paz!
SĂŁo frases lançadas repetidamente, atĂ© que os meus ouvidos jĂĄ nĂŁo distinguem o eco da sua voz. Mas, curiosamente, mesmo na tormenta da sua fĂșria, as boas maneiras nunca o abandonam. Ao ver-me Ă janela, a sua voz amansa e, com um sorriso que desafia o caos, saĂșda-me:
â Bom dia, vizinho!
Outrora, o homem dos cĂŁes teve um companheiro, um amigo com quem partilhava a velha casa â ou o que restava dela, uma ruĂna pontilhada de buracos, janelas improvisadas e portas que apenas existiam na intenção. Nas manhĂŁs e nos entardeceres, entre um gole de vinho barato e a lealdade dos cĂŁes, confiava-lhe a tarefa de os levar Ă rua. Mesmo nos dias em que o frio cortava a pele e a chuva pintava a cidade de cinza, alguĂ©m precisava de sair. Talvez porque, para alguns, a rua seja a Ășnica forma de matar a fome â ou de se sentir vivo.
Mas o amigo desapareceu hĂĄ meses, sem deixar rasto. Perguntei ao homem dos cĂŁes e ele, num encolher de ombros resignado, admitiu nĂŁo saber o paradeiro de quem, durante anos, partilhou consigo o peso da existĂȘncia.
â Talvez tenha encontrado um lugar melhor⊠â diz ele, com um brilho incerto no olhar.
â Ou esteja deitado numa cama de hospital⊠Ou morto.
â Afinal, vivemos num mundo onde ninguĂ©m se importa com a morte de um sem-abrigo.
E ali estĂĄ ele, entre cĂŁes e destroços, talvez mais inteiro do que muitos de nĂłs. Porque, por mais que tente, nĂŁo consigo deixar de pensar que a verdadeira liberdade mora onde a dignidade resiste â mesmo quando tudo o resto jĂĄ caiu.