Em todas as sociedades onde o cristianismo fincou raízes, há uma frase que se repete como um refrão antigo, um sussurro que atravessa templos, púlpitos e gerações: “A Bíblia é a palavra infalível de Deus.”

Essa declaração, tão absoluta quanto o próprio objeto que descreve, moldou civilizações inteiras. É fundamento de fé, bússola moral e, em muitos casos, instrumento de poder. Mas, na medida em que a modernidade avançou — com suas descobertas arqueológicas, suas metodologias históricas e sua incômoda mania de perguntar —, essa convicção começou a ser examinada à luz da razão.

O resultado é um desconforto intelectual e espiritual que acompanha o mundo contemporâneo:

Será a Bíblia realmente infalível, ou foi moldada e editada por homens que, ao interpretá-la, a revestiram de perfeição?

O texto sagrado que ninguém viu

A primeira surpresa, para quem se aproxima do tema sem véus dogmáticos, é esta: nenhum manuscrito original da Bíblia sobreviveu.

Nenhuma letra escrita pela mão de Moisés, nenhum pergaminho saído da pena de Isaías, nenhum autógrafo dos apóstolos. O que chegou até nós são cópias de cópias — reproduções feitas por escribas e monges, durante séculos, em épocas em que o erro humano, a pressa e até as disputas teológicas podiam deixar marcas invisíveis.

Esse dado não nega a dimensão espiritual da Escritura, mas desmente a ideia de uma transmissão imaculada. Se o conteúdo divino precisou de mãos humanas para ser preservado, até que ponto o humano interferiu no divino?

A crítica textual, disciplina que compara variantes de manuscritos, identificou milhares de pequenas diferenças entre cópias antigas: palavras trocadas, frases omitidas, parágrafos acrescentados. Muitas são inocentes; outras revelam tentativas conscientes de harmonizar contradições ou reforçar doutrinas.

O estudioso norte-americano Bart D. Ehrman, referência mundial em crítica textual, observou que “o Novo Testamento que lemos hoje é o produto de séculos de cópias feitas por mãos falíveis, que às vezes alteraram o texto por engano — e outras, por intenção.” Isso não destrói a fé; apenas a torna mais honesta.

A biblioteca viva

A visão popular da Bíblia como um volume único, fechado e finalizado desmoronou quando, em 1947, um pastor beduíno tropeçou no acaso da história. Nas cavernas de Qumran, às margens do Mar Morto, ele encontrou jarros contendo pergaminhos de mais de dois mil anos.

Eram os Manuscritos do Mar Morto — e neles, versões de textos que conhecemos hoje e outros que haviam desaparecido do cânone. O achado revelou que, no tempo de Jesus, não havia uma Bíblia única, mas uma coleção em movimento: textos, tradições e interpretações que circulavam entre comunidades judaicas diferentes.

O cânone — a lista de livros considerados inspirados — não nasceu no céu; formou-se lentamente, em debates, exclusões e concílios.

Essa pluralidade textual desafia a imagem de uma revelação cristalina. Mostra que a Bíblia foi, antes de tudo, um organismo vivo, respirando as tensões, esperanças e medos de seu tempo.

O historiador Geza Vermes, especialista em judaísmo antigo, chamou os manuscritos de “fotografia espiritual de uma época em que a fé era conversa, não decreto”. Cada rolo, cada fragmento de couro ressecado, ecoa a voz de uma humanidade que buscava o divino por caminhos múltiplos.

Escolher é exercer poder

A consolidação da Bíblia cristã foi um processo político e espiritual de séculos.

Nos primeiros tempos do cristianismo, dezenas de evangelhos circulavam entre comunidades: alguns descreviam um Cristo sábio e humano; outros, um ser celeste e enigmático; outros ainda, um mestre iniciático que ensinava a autotranscendência.

Concílios e sínodos definiram, com o tempo, quais textos seriam “inspirados” e quais seriam “heréticos”. O Evangelho de Tomé, por exemplo, contém frases atribuídas a Jesus, mas sem narrativa de milagres ou ressurreição. A sua exclusão, como lembra Elaine Pagels em Os Evangelhos Gnósticos, refletiu menos a ausência de fé e mais a disputa por autoridade.

A formação do cânone foi uma escolha, e toda escolha é ato de poder.

O teólogo Bruce M. Metzger, um dos mais respeitados estudiosos do cânone cristão, escreveu que “a Igreja escolheu seus livros da mesma forma que eles a moldaram”. O sagrado, assim, é fruto de um diálogo entre o céu e a terra, entre a inspiração e a instituição.

Quando a fé encontra o contexto

Mesmo depois de o cânone se consolidar, o significado da Bíblia nunca foi fixo. A leitura é sempre um espelho: reflete mais o leitor do que o texto.

Na Idade Média, os teólogos viam o Antigo Testamento como prefiguração do Cristo; já a Reforma Protestante, séculos depois, transformou a leitura literal em símbolo de resistência à autoridade papal.

Mas a leitura literal — tão comum hoje em setores fundamentalistas — carrega armadilhas. Obriga o texto a responder perguntas que ele jamais se propôs a fazer. O Gênesis não é tratado científico; o Levítico não foi escrito para sociedades industriais.

A insistência em ler tudo ao pé da letra é o que alguns chamam de bibliolatria — a adoração do livro em vez da divindade.

O teólogo John Shelby Spong, em Rescuing the Bible from Fundamentalism, adverte: “Quando transformamos o texto em ídolo, perdemos o Deus que o texto tenta revelar.”

Ler a Bíblia com inteligência histórica, por outro lado, não destrói a fé: aprofundá-la. Torna possível encontrar nela o humano e o divino entrelaçados — uma teia de símbolos e experiências que ainda fala ao coração moderno.

A arqueologia da dúvida

A modernidade trouxe algo que as eras anteriores temiam: o hábito de duvidar.

Com o avanço da arqueologia e da crítica histórica, as narrativas bíblicas começaram a ser comparadas a documentos antigos, inscrições e achados materiais. Em alguns casos, confirmaram-se tradições; em outros, revelaram-se lendas teológicas.

Essa tensão entre fé e ciência não precisa ser guerra. Pode ser diálogo.

A historiadora das religiões Karen Armstrong observa que “a função dos mitos sempre foi inspirar compaixão e transformação, não transmitir fatos científicos.” Na sua leitura, a Bíblia não é registro literal do passado, mas poesia sagrada sobre a condição humana.

E se Deus não ditou o texto palavra por palavra? E se o sagrado se revelou nas imperfeições, nos equívocos e nas metáforas? Talvez, como sugerem os místicos, a transcendência se esconda precisamente na falha — o divino infiltrado no humano.

O Deus que fala entre linhas

A pergunta permanece: se Deus é perfeito, por que permitir contradições, lapsos, ambiguidades?

Talvez porque a Escritura, longe de ser um código imutável, seja um espelho da busca humana.

O filósofo Paul Tillich dizia que “fé é coragem de aceitar o fato de ser aceito apesar de ser inaceitável”. A Bíblia, nesse sentido, é o relato dessa coragem, homens e mulheres tentando ouvir o eterno através do ruído da história.

As variações de manuscritos, as disputas de concílios, as traduções imperfeitas — tudo isso não diminui o sagrado. Revela-o. Mostra que a palavra de Deus, se existe, fala através da carne frágil do homem.

O teólogo Rudolf Bultmann escreveu que “Deus não se revela em proposições, mas em encontros”. A Bíblia é memória desses encontros — de medos, êxtases e revelações traduzidas em linguagem humana.

A palavra que atravessa os séculos

Mesmo quando questionada, a Bíblia resiste. Continua a inspirar artistas, revolucionários, poetas e pensadores.

De Tolstói a Martin Luther King, de Teresa de Calcutá a Simone Weil, a Escritura foi alimento e desafio. Cada geração a relê à sua maneira — e é justamente isso que a mantém viva.

Quando Gutenberg imprimiu a primeira Bíblia em 1455, libertou o texto do monopólio dos mosteiros. Quase cinco séculos depois, a internet fez o mesmo: hoje, qualquer pessoa pode comparar traduções, consultar manuscritos e dialogar com eruditos. A fé saiu do altar e entrou no espaço público.

O texto sagrado tornou-se terreno de debate, dúvida e redescoberta. E é talvez nesse processo que reside o seu verdadeiro milagre: sobreviver à crítica e ainda inspirar.

O que dizem os estudiosos

Ao longo do último século, a investigação acadêmica tem redesenhado a relação entre fé e razão.

  • Bart D. Ehrman (Universidade da Carolina do Norte) mostra que as diferenças textuais entre manuscritos revelam não corrupção, mas vitalidade — um cristianismo em formação.

  • Elaine Pagels (Universidade de Princeton) destaca que os evangelhos gnósticos mostram uma pluralidade espiritual reprimida pela ortodoxia.

  • John Shelby Spong defende que libertar a Bíblia do literalismo é condição para que ela volte a falar às consciências modernas.

  • Karen Armstrong, ex-freira e historiadora, lembra que toda linguagem sobre Deus é simbólica: o mito é a forma mais honesta de dizer o indizível.

  • Bruce M. Metzger e Geza Vermes estudaram, cada um à sua maneira, o percurso material e espiritual dos textos bíblicos, ambos concluíram que a força da Bíblia não está na sua pureza textual, mas na sua capacidade de gerar sentido ao longo dos séculos.

Juntos, esses nomes representam uma linha de pensamento que não nega o mistério, mas o reconcilia com a inteligência.

O que resta depois da dúvida

A dúvida, longe de ser inimiga da fé, é o que a torna adulta.

Crer sem questionar é submissão; crer apesar das perguntas é escolha.

A Bíblia, lida com maturidade, não é manual científico nem código moral fechado. É o testemunho de uma humanidade em busca de Deus — ou de algo que dê nome ao indizível.

Ela fala de amor, de justiça, de medo e esperança. Fala das falhas humanas e da insistência divina em atravessá-las.

Quando compreendemos isso, a pergunta sobre infalibilidade perde importância. O que importa é a verdade que se revela na imperfeição.

Porque talvez a maior lição do texto sagrado seja justamente esta: o sagrado não teme a crítica. Ele a convida.

“A verdade, se divina, não precisa de proteção — apenas de honestidade.”

Leituras recomendadas

  • Bart D. Ehrman — Misquoting Jesus: The Story Behind Who Changed the Bible and Why (HarperOne, 2005)

  • Elaine Pagels — The Gnostic Gospels (Vintage, 1979)

  • John Shelby Spong — Rescuing the Bible from Fundamentalism (HarperCollins, 1991)

  • Karen Armstrong — A History of God (Knopf, 1993)

  • Bruce M. Metzger — The Canon of the New Testament (Clarendon Press, 1987)

  • Geza Vermes — The Complete Dead Sea Scrolls in English (Penguin, 1997)

A Bíblia é mesmo a verdade absoluta e infalível?

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Por Paulo Muhongo

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Será que precisamos defender a infalibilidade da Bíblia, ou bastaria lê-la com mais verdade, aceitando que o divino pode falar também através da dúvida?

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11/1/20257 min ler