Nas eleições gerais realizadas em 29 de outubro de 2025, a Tanzânia viu o que muitos observadores já classificam como um processo eleitoral profundamente comprometido. A missão de observação da SADC concluiu que o pleito foi “totalmente fraudulento, violento e contrário aos princípios da organização regional”. Essa afirmação reveste-se de particular gravidade — pois advém de um organismo regional que via-de-regra adopta linguagem diplomática. O relatório preliminar da missão (SEOM) da SADC, combinado com numerosos relatos de entidades de direitos humanos, jornalistas e ativistas, pinta um quadro sombrio de intimidação, exclusão e ausência de transparência.
Este artigo vai dissecar o processo eleitoral, examinar as evidências, dar voz aos protagonistas e explorar as implicações para a Tanzânia, a região e a democracia africana.
Contexto político pré-eleitoral
Sob a presidência de Samia Suluhu Hassan, ascendida ao cargo em 2021 após a morte de John Pombe Magufuli, a Tanzânia parecia apontar para um rumo mais liberal, pelo menos no discurso. No entanto, relatórios de organizações de direitos humanos começaram a registar, já antes de 2025, um endurecimento progressivo do ambiente político.
Por exemplo, a Human Rights Watch (HRW) documentou casos de detenção arbitrária, desaparecimentos forçados e repressão sistemática de ativistas, juízes, jornalistas e membros da oposição.
Em abril de 2025, o maior partido de oposição, Chama cha Demokrasia na Maendeleo (CHADEMA), foi declarado inelegível para disputar as eleições sob o argumento de não ter assinado o código de conduta exigido pela comissão eleitoral.
Além disso, o líder do CHADEMA, Tundu Lissu, foi acusado de traição, impedido de concorrer e detido.
A outra principal força da oposição, ACT‑Wazalendo, viu o seu candidato, Luhaga Mpina, desqualificado. Neste panorama, o partido governante, Chama Cha Mapinduzi (CCM), emergia sem adversários credíveis.
Organizações como a Amnesty International alertaram para uma escalada de repressão nos meses que antecederam as eleições: detenções em massa, desaparecimentos, ataques a jornalistas e ativistas, restrições à liberdade de expressão e de reunião.
Um testemunho citado por Amnesty descreve:
“Out of nowhere, a man who was wielding a long, pointed object jammed it through the inner ankle of my left leg… several of my captors were filming the ordeal, while laughing at and taunting us.”
Este tipo de relato revela o grau de temor no qual membros da oposição e activistas viviam.
A SADC lançou oficialmente a sua Missão de Observação Eleitoral (SEOM) para as eleições de 2025 em 21-10-2025. A missão tinha por objectivo verificar o cumprimento da legislação nacional da Tanzânia e das “Revised 2021 SADC Principles and Guidelines Governing Democratic Elections”. Observadores foram destacados em 27 das 31 regiões da Tanzânia. Contudo, o funcionamento pleno da missão viu-se obstaculizado pelos eventos subsequentes.
O dia da votação e os eventos subsequentes
No dia da eleição (29 outubro 2025), observatórios técnicos registaram uma queda abrupta no tráfego de internet: por volta das 12h30, os dados indicavam uma redução de cerca de 90% comparado com níveis normais. Jornalistas relataram que as plataformas sociais estavam inacessíveis sem VPN.
Especialistas em direitos digitais sublinham que tal corte compromete severamente a transparência de um pleito eleitoral: impede a livre circulação de informações, dificulta a verificação independente de resultados e cria um ambiente de opacidade e medo.
Segundo os resultados oficiais, a presidente Samia Suluhu Hassan foi declarada vencedora com 97,66% dos votos, numa participação registada de cerca de 87%.
A oposição rejeitou o resultado como manifestamente “fabricado”, alegando que sem uma competição real não se tratou de eleição.
Nos dias após a votação emergiram protestos em várias cidades (Dar es Salaam, Mwanza, Arusha), principalmente entre jovens que se sentiram excluídos do processo. A oposição afirmou que o número de mortos ultrapassa os 700, enquanto agências internacionais verificadas falam de “pelo menos 10” mortos em relatos confirmados.
O governo negou esses números elevados, afirmando que não tinha dados sobre centenas de manifestações ou mortes. ( A SADC, em comunicado recente, manifestou “profunda preocupação” com a violência pós-eleitoral e instou ao fim imediato de hostilidades.
O relatório preliminar da SADC aponta para práticas como: urnas com boletins empilhados, presença excessiva de forças de segurança em assembleias de voto, obstrução à participação de mulheres e jovens, e falta de independência da comissão eleitoral.
Embora o relatório ainda não esteja integralmente público, as observações preliminares sublinham que:
“não existiram condições para que o eleitor expressasse livremente a sua vontade”.
Essa avaliação coincide com relatórios de ONGs que documentaram repressão, exclusão de candidatos e restrições à ação da sociedade civil.
Análise por especialistas
Para o professor N. M. Mbunda (Universidade da África Austral, Maputo) :
"a linguagem usada pela SADC desta vez ultrapassa o habitual tom diplomático; fala-se em ‘totalmente fraudulento’ e ‘contrário aos princípios’. Isso dá a entender que a missão considerou que as falhas não eram pontuais, mas sistémicas”.
Ele realça que a SADC não tem poder para anular eleições, mas que a reputação e o peso político do bloco estão em jogo: se não houver consequências, o valor dissuasor das missões regionais diminui.
A analista de direitos humanos Drª Clara Moyo (Centro de Direitos Humanos de Lusaka) observa que:
“a combinação de bloqueio da internet, exclusão da oposição e violência cria o que chamamos de ‘eleições de alibi’: existe urna, existe contagem, mas não existe competição real”.
Ela acrescenta que, com o uso de força estatal e ausência de independência da comissão eleitoral, a eleição deixa de expressar a vontade do povo e torna-se instrumento de legitimação de poder.
Segundo o ativista digital tanzaniano Omar S. Shabaan, “vimos uma juventude que tentou recorrer às VPNs, às plataformas sociais, às transmissões em direto, mas foi silenciada pelo corte digital. Quando falamos de participação política, privar a juventude de comunicar é silenciar o futuro”.
Ele afirma que o apelo à participação (muito citado pela SADC no lançamento da missão) acabou por ser contraditório com as práticas no terreno.
A SADC encontra-se num dilema: aplicar sanções diplomáticas severas arrisca criar rutura institucional, mas não agir mina a sua autoridade moral.
Como sublinha Mbunda:
“se a SADC aceitar que eleições desta natureza sejam válidas, envia-se um sinal negativo à região: dirigentes autocráticos sentirão que podem usar ‘modelos’ procedurais superficiais para se manter no poder”.
A analista de política africana Profª Linda Adebayo (Universidade de Abuja) nota ainda que a Tanzânia, dado o seu papel estratégico na Comunidade da África Oriental (EAC) e na SADC, pode tornar-se o “modelo regressivo” para países vizinhos se a impunidade prevalecer.
Um dos ativistas citados pela Amnesty descreve assim:
“They took me by car and drove for three to four hours, then beat me and abandoned me, unconscious, in Katavi National Park….”
Este tipo de relato documentado reforça uma componente que vai além da simples irregularidade eleitoral: trata-se de repressão política sistemática.
“Quando vimos as urnas vazias, a polícia empilhando boletins, a internet caída, percebemos que votar era quase simbólico, não havia escolha real.”
Entrevistado por jornalistas em Dar es Salaam, citado por Al Jazeera.
Um representante da ACT-Wazalendo afirmou:
“Nós fomos excluídos legalmente antes de começarmos, e o resultado foi anunciado sem nós. Como pode haver eleição se não nos deixaram participar?” Omar S.
Shabaan para Semafor.
Por que esta eleição importa?
A legitimação de um governo eleito num processo amplamente contestado fragiliza tanto o seu apoio interno como externo. Isso pode traduzir-se em isolamento diplomático, redução de investimentos estrangeiros e crises económicas ou sociais de maior escala.
Se a SADC não conseguir transformar as conclusões do relatório em ação credível, corre-se o risco de tornar as suas missões de observação meramente formais. A reputação institucional está em causa.
Este caso alimenta o debate sobre “eleições sem democracia” em África, onde o processo pode existir, mas o conteúdo democrático não. A normalização de eleições de fachada mina os avanços há décadas construídos de pluralismo e participação.
O corte da internet e a repressão digital demonstram como as tecnologias, ao invés de empoderarem o cidadão, podem tornar-se ferramentas de apagamento e controlo o que tem implicações para todos os regimes em transição e para activistas digitais.
Desafios, incertezas e pontos de atenção
A missão da SADC produziu apenas um relatório preliminar; o relatório final, com dados mais robustos e recomendações precisas, ainda não foi divulgado públicamente.
Os números de vítimas da repressão variam amplamente: a oposição fala de centenas, enquanto fontes independentes confirmam apenas uma dezena.
A investigação independente do processo (auditoria de cadernos eleitorais, acesso pleno à informação) encontra obstáculos graves; bloqueios de internet, intimidação de testemunhas e falta de transparência institucional.
A reação regional e internacional poderá demorar, e sem pressão firme; financeira, diplomática ou jurídica; o risco é que o governo tanzaniano avance sem medidas de responsabilização.
Conclusão
A eleição de 2025 na Tanzânia representa mais que um momento de votação; simboliza, para muitos, o ponto de viragem entre uma promessa de transição democrática e um retrocesso autoritário mais profundo. A SADC, com o seu relatório contundente, acendeu o alarme, mas sem follow-up eficaz a credibilidade desse alarme pode esmorecer.
Para os cidadãos tanzanianos, para a juventude que tentou participar através da internet e das redes sociais, para a oposição que se viu excluída, este processo ficará como página de ruptura na história política do país. Para a África Austral, é um teste: ou as instituições são capazes de responder, ou correm o risco de serem meras testemunhas silenciosas de eleições sem escolha.
O mundo vai olhar, e a pergunta que fica é: o que vai fazer a SADC agora?
O caso da Tanzânia é um espelho inquietante do estado da democracia na África Austral. Ele expõe as fragilidades institucionais, a manipulação das leis e a instrumentalização da força como mecanismos de poder.
Mas também revela o poder da resistência civil, da denúncia e da solidariedade entre povos que partilham a mesma luta por liberdade e dignidade.
Principais fontes consultadas
SADC — SEOM, Preliminary Statement on the 2025 General Election (Head of Mission statement, 3 Nov 2025). sadc.int
Amnesty International — múltiplos briefings e relatório “Unopposed, Unchecked, Unjust” (Outubro 2025). Amnesty International+1
Reuters — cobertura sobre a exclusão de opositores e o cenário eleitoral (29–31 Oct 2025). Reuters
The Guardian — notícias sobre resultado e protestos (1 Nov 2025). theguardian.com
ACHPR — comunicado sobre o corte de internet (1 Nov 2025). achpr.au.int
France24, Le Monde, CBS — reportagens sobre protestos, curfew e violência.


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Por Paulo Muhongo
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POLITICA
11/3/20258 min ler
