O anúncio de que o Governo de Angola e a Federação Angolana de Futebol (FAF) pagariam 12 milhões de euros à seleção argentina, campeã do mundo e liderada por Lionel Messi — para disputar um jogo amistoso no dia 14 de novembro, transformou-se rapidamente num dos temas mais polémicos do ano.

O que seria uma celebração dos 50 anos da independência tornou-se, para muitos, um retrato do abismo entre as prioridades do poder e a realidade da população. Enquanto a elite se prepara para receber estrelas do futebol mundial, milhões de angolanos continuam sem acesso à água potável, transporte público digno, alimentação básica e cuidados de saúde essenciais.

Um país rico, mas pobre em serviços básicos

Angola, segundo dados do Banco Mundial, continua entre os países com maior desigualdade económica do continente. Mais de 32% da população vive abaixo da linha da pobreza, e cerca de 3,6 milhões de pessoas enfrentam insegurança alimentar severa, de acordo com o Programa Mundial de Alimentação (WFP, 2024).

Apesar disso, o país gastará, segundo estimativas jornalísticas, o equivalente a 14 bilhões de kwanzas para trazer Messi e seus companheiros a Luanda.

“É um insulto à dignidade dos cidadãos”, afirma o economista angolano Manuel Domingos, da Universidade Agostinho Neto.

“Esse dinheiro poderia financiar centenas de escolas primárias, abastecer comunidades rurais com água ou garantir alimentação para milhares de famílias. O Estado está a preferir espetáculo à sobrevivência.

Estradas intransitáveis e hospitais sem medicamentos

A realidade quotidiana contrasta com a euforia oficial. Em bairros periféricos de Luanda e nas províncias do interior, a população enfrenta um cenário de abandono. Estradas esburacadas isolam comunidades, hospitais carecem de medicamentos básicos e mulheres ainda dão à luz em condições precárias.

“Como falar em turismo ou projeção internacional quando não temos sequer estradas para chegar a um hospital?”, Questiona a socióloga Paula Mendes, investigadora do Centro de Estudos Sociais de Angola.

“Não há coerência entre o discurso modernizador e a prática governativa. Este amistoso é uma cortina de fumaça.”

Críticas de dentro e fora do país

A controvérsia ultrapassou as fronteiras. O jornal espanhol AS noticiou que o acordo custaria cerca de €12 milhões, chamando-o de “contrato de luxo”. Pouco depois, quatro ONGs internacionais, incluindo a Amnesty International e a Human Rights Watch, apelaram à Associação de Futebol da Argentina (AFA) para reconsiderar o jogo, citando “violação de direitos sociais” e “uso irresponsável de fundos públicos” num país em crise.
Fonte: AS – Angola paga 12M€ por Messi

“Não é apenas um jogo. É uma manobra simbólica que ignora a fome, a pobreza e a ausência de transparência na gestão pública”, comentou Clara Bennett, analista do Africa Policy Institute, em entrevista à rádio BBC Africa.

“Quando governos gastam milhões em entretenimento enquanto cidadãos passam fome, isso deixa de ser política — é negligência social.”

O paradoxo das prioridades

O Orçamento Geral do Estado (OGE) 2024 destinou cerca de 5,5% dos recursos à saúde e 3,5% à proteção social, percentagens muito abaixo das recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Declaração de Abuja.
Enquanto isso, o desporto profissional — dominado por gestões politizadas e por ausência de transparência — recebeu dotações e benefícios que não se refletem na base.

O desporto de elite serve apenas à imagem do regime”, argumenta Adriano João, antigo técnico de futebol e comentarista no Novo Jornal. “Os campos comunitários estão abandonados, não há programas de formação, e agora gasta-se o que não se tem para impressionar estrangeiros. É teatro político pago com a fome do povo.”

Fome e desigualdade: o outro lado da festa

Dados do Programa Alimentar Mundial (WFP) mostram que mais de 15% das crianças angolanas sofrem de desnutrição crónica. Em províncias como Cunene e Cuando Cubango, há relatos de famílias que sobrevivem com uma refeição por dia.

“Esses 12 milhões poderiam financiar um ano inteiro de programas de nutrição infantil no sul do país”, calcula a especialista em segurança alimentar Maria Lopes, da organização ActionAid Angola. “Mas preferiram gastar com um jogo que dura 90 minutos. É o retrato perfeito da insensibilidade política.”

Estrutura pública em colapso

Nos transportes públicos, o quadro é igualmente sombrio. Os autocarros públicos são insuficientes, e os preços dos combustíveis tornaram inviável o transporte privado para a maioria. Nas periferias, trabalhadores caminham horas até seus empregos.

“Querem atrair turistas, mas nem os cidadãos conseguem se deslocar dentro da própria cidade”, ironiza o urbanista Elias Chivambo, membro da Ordem dos Engenheiros de Angola. “O dinheiro deveria ser investido em estradas e mobilidade urbana, não em celebrar glórias alheias.”

“Turismo sem infraestrutura é fantasia”

O argumento oficial de que o amistoso atrairá turistas é recebido com ceticismo.

“Não há turismo sustentável sem água potável, saneamento e segurança,” lembra a economista moçambicana Sílvia Cossa, especialista em políticas públicas da Universidade Eduardo Mondlane. “Quando o Estado não garante direitos básicos, eventos como este são apenas distrações caras.”

A falta de estradas pavimentadas, energia elétrica confiável e saneamento básico torna improvável que visitantes internacionais regressem após o jogo. “O que os turistas verão é um país bonito, mas com infraestrutura precária e desigualdade gritante”, completa Cossa.

Corrupção e falta de transparência

O relatório da Transparência Internacional (2024) coloca Angola entre os países africanos com pior índice de percepção da corrupção. A ausência de dados públicos sobre o contrato com a AFA reforça suspeitas.

“Ninguém sabe de onde vem o dinheiro, nem quem lucra com o negócio,” denuncia Rafael Moisés, jornalista de investigação do Club-K Angola. “O governo fala em celebração nacional, mas não apresenta contrato, cláusulas, nem estimativas de retorno. É o velho padrão de falta de prestação de contas.”

“Um jogo que custa vidas”

Na visão de especialistas em políticas sociais, o amistoso não é apenas uma má decisão económica, mas um ato moralmente indefensável.

“Cada euro gasto nesse evento representa uma criança sem vacina, uma escola sem carteiras, uma família sem água potável,” diz a analista internacional Judith Carvalho, do Institute for Global Justice (IGJ). “É uma escolha consciente de manter o luxo da minoria à custa da miséria da maioria.”

Vozes nas ruas

Em Luanda, a indignação é palpável. Nas redes sociais, angolanos expressam frustração com o que consideram uma afronta.

“Messi não bebe da nossa água, não anda nas nossas estradas, não sente a nossa fome”, escreveu um internauta no X (antigo Twitter). “Mas vai receber milhões pagos com o nosso sofrimento.”

Pequenas manifestações começaram a surgir nas universidades e nos mercados, embora sem grande cobertura nos meios estatais. Grupos civis planeiam protestos pacíficos durante a semana do jogo.

Uma vitrine política de curto prazo

Para analistas internacionais, o amistoso é parte de uma estratégia de imagem do governo.

“O regime quer associar-se ao glamour de Messi para celebrar 50 anos de independência, tentando maquilhar os problemas internos,” explica David Rosen, professor de Relações Internacionais da London School of Economics.

“Mas em tempos de crise, símbolos de luxo soam como insultos. Isso pode aumentar a tensão social, não aliviá-la.”

A oportunidade perdida

Especialistas calculam que os 12 milhões de euros pagos poderiam financiar:

  • 3.000 postos de abastecimento de água comunitária;

  • 100 escolas primárias equipadas;

  • 20 unidades de saúde de referência em províncias carenciadas;

  • alimentos básicos para 200 mil famílias por seis meses.

“Esse jogo custará o equivalente à esperança de milhares de famílias,” resume o sociólogo Nuno Vasco, da Universidade Católica de Angola. “Não é apenas irracional. É cruel.”

O luxo de poucos, a dor de muitos

O amistoso entre Angola e Argentina já entrou para a história — não pelo futebol, mas como símbolo da desconexão entre poder e povo. Em vez de celebrar conquistas, expôs fragilidades: desigualdade, corrupção e prioridades distorcidas.

Enquanto os holofotes do Estádio 11 de Novembro se acenderem para Messi e companhia, milhões de angolanos continuarão na escuridão das casas sem luz, das estradas de lama e da fome diária.

“Não se trata de futebol”, conclui o economista Manuel Domingos. “Trata-se de moralidade, de escolhas. E o governo escolheu o luxo, não a vida.”

Fontes citadas e consultadas:

  • AS.com – “Angola paga 12M€ por Messi” (2025)

  • AS.com – “Cuatro ONG piden a Argentina no jugar en Angola” (2025)

  • Banco Mundial, Country Data Angola (2024)

  • Programa Mundial de Alimentação (WFP)Country Brief Angola (2024)

  • UNICEF Angola, Relatório sobre OGE e Prioridades Sociais (2024)

  • Transparência Internacional, Corruption Perception Index (2024)

  • Entrevistas e declarações de especialistas nacionais e internacionais (Universidade Agostinho Neto, LSE, ActionAid, IGJ, entre outros)

12 M USD por 90 minutos: o custo do amistoso da Argentina em Angola

Por Paulo Muhongo

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Será que Angola precisa mesmo gastar 12 milhões de euros para ser vista ou bastaria cuidar melhor do seu próprio povo para conquistar respeito no mundo?

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11/1/20256 min ler