Discurso sobre o Estado da Nação que Ignora o Povo

Analise detalhada do Discurso sobre o Estado da Nação de Angola em 2025. Entenda as falhas constitucionais, a crise social e económica, e o impacto sobre a população."

Introdução

O recente Discurso sobre o Estado da Nação do Presidente João Lourenço chega num momento delicado para Angola. Greves, detenções e protestos populares expõem um abismo entre a narrativa oficial e a realidade vivida por milhões de cidadãos. Enquanto o discurso exaltou conquistas macroeconómicas e metas de longo prazo, omitiu elementos cruciais sobre direitos fundamentais, crise social e responsabilização do Estado. Este artigo analisa ponto a ponto o que deveria ter sido dito, à luz da Constituição e dos princípios democráticos.

Transparência: a verdade acima de narrativas oficiais

O artigo 2.º da Constituição define Angola como um Estado Democrático de Direito. A democracia exige transparência e factualidade. Durante os protestos recentes, centenas de cidadãos foram detidos e dezenas perderam a vida. Organizações como a Amnistia Internacional e a Human Rights Watch exigiram investigações independentes.

O discurso presidencial limitou-se a condenar “atos de vandalismo” e defender a atuação das forças de segurança. Uma abordagem democrática deveria ter reconhecido as falhas institucionais, divulgado dados claros e anunciado a criação de uma Comissão de Inquérito independente.

Manifestação pacífica e liberdade de expressão

O artigo 47.º garante o direito à manifestação pacífica. Ao rotular protestos como ações de “subversão” ou “antipatriotas”, o Governo arrisca criminalizar a dissidência legítima.

Um discurso de Estado responsável deveria reafirmar que protestar pacificamente não é crime e que qualquer ato criminoso deve ser tratado segundo a lei, preservando direitos e garantias constitucionais.

Garantia da vida e dignidade humana

O artigo 30.º declara a vida inviolável, e o 36.º protege a liberdade e segurança pessoal. A ausência de menção a responsabilização ou investigação independente das mortes durante os protestos fragiliza a confiança pública e fere princípios constitucionais.

O Presidente poderia ter anunciado a criação de uma Comissão Nacional de Verdade e Responsabilização, com juízes, peritos e representantes da sociedade civil.

Crise económica e abismo social

Enquanto o discurso oficial celebra metas para 2050, a realidade é dura: muitas famílias sobrevivem com menos de 3 euros por dia. A inflação, o aumento do combustível e o desemprego empurram milhões para a informalidade.

A Constituição (artigo 21.º) exige desenvolvimento sustentável e distribuição justa da riqueza. Medidas imediatas poderiam incluir:

  • Subsídios temporários a transportadores e trabalhadores informais;

  • Programas de alimentação e educação de emergência;

  • Redução de impostos sobre bens essenciais;

  • Auditoria e transparência na gestão dos fundos públicos.

Forças de segurança e abuso de poder

O artigo 174.º determina que forças armadas e polícia atuem dentro da lei, respeitando direitos fundamentais. No entanto, relatos indicam uso excessivo de força, munição real contra civis e intimidação a jornalistas.

O discurso deveria ter prometido revisão das regras de engagement, proibição de munição letal em manifestações e formação obrigatória em direitos humanos.

Diálogo nacional como instrumento de reconciliação

A Constituição (artigo 164.º) incentiva o diálogo entre Estado e sociedade civil. A convocação de uma Mesa Nacional de Diálogo com sindicatos, associações de taxistas, igrejas e ONGs permitiria negociações pacíficas e legitimas soluções para conflitos sociais.

Cooperação internacional e credibilidade

Recusar a observação internacional em investigações sobre abusos reforça a desconfiança. A Constituição (artigo 12.º) prevê o respeito aos tratados internacionais de direitos humanos.

Um gesto democrático seria convidar peritos da ONU, União Africana e SADC para apoiar inquéritos, garantindo transparência e imparcialidade.

O povo como sujeito da Nação

O artigo 2.º lembra que a soberania reside no povo. Quando os governantes se afastam dessa premissa, a democracia torna-se aparente e não vivida. Um discurso presidencial deveria mostrar empatia, humildade política e compromisso com a participação cidadã.

Conclusão: entre discurso e realidade

Angola enfrenta uma encruzilhada histórica: ou escolhe transparência, justiça e democracia participativa, ou mantém um sistema que criminaliza vozes do povo e ignora direitos constitucionais.

A realidade exige ação imediata: libertação de detidos, investigação independente, programas sociais urgentes e proteção à liberdade de expressão.

Apelo final

A democracia não se mede pelos discursos, mas pelas ações. É hora de:

  • Libertar detidos sem acusações;

  • Apurar mortes em protestos de forma independente;

  • Implementar medidas urgentes de combate à pobreza;

  • Garantir liberdade de imprensa e proteção a defensores dos direitos humanos;

  • Devolver ao povo o direito de se fazer ouvir.

Paulo André Muhongo
Escritor e analista político independente
Lisboa, Outubro de 2025