Quando se fala de África antes da chegada dos europeus, muitos imaginam — por ignorância ou por tradição historiográfica — “terras primitivas”, “povos sem história”, “sociedades atrasadas”. Mas os factos mostram outra realidade: vastos impérios, cidades prósperas, trocas comerciais internacionais, cultura sofisticada. Por exemplo, o Império Songhai (c. 1460–1591) era um dos maiores estados da África Ocidental, centrado em Gao, controlando rotas de comércio e cidades como Timbuktu e Djenné. (cedirates.com) Em outra região, o Império de Great Zimbabwe no que é hoje o Zimbabwe possui imponentes ruínas de pedra, indicando uma civilização que entre os séculos IX e XIII dominava a metalurgia, o comércio de ouro e cobre, e tinha ligações marítimas e interiores. (Wikipedia)
Estas sociedades, longe de serem “pré‑históricas”, geriram recursos, conhecimento, políticas e identidades próprias. Por exemplo, a arquitectura yoruba no Nigéria remonta ao século VIII e revela padrões urbanos, artesãos especializados e formas de organização distintas. (Wikipedia)
O que isto significa para o nosso tema? Significa que a narrativa de inferioridade — de que “África sempre foi atrasada” — é inadequada, porque omite o protagonismo africano, e ao fazê‑lo, contribui para uma lógica de subalternização: se o continente “não fez história”, então pode ser “feito por outros”. Adotar essa lógica é perpetuar a desigualdade simbólica que precede a desigualdade material.
A chegada dos europeus, a colonização e a formalização da dependência
Com a expansão europeia e a colonização dos séculos XIX e XX, as relações de poder entre África e o Ocidente tomaram formas que deixaram marcas profundas. A “independência” formal dos países africanos — a partir de 1960 — representou um momento decisivo: juridicamente soberanos, mas estruturalmente muitos países africanos continuaram dependentes de potências externas.
Um conceito central aqui é o da Françafrique: a rede de relações pós‑coloniais entre a França e os seus antigos territórios africanos que manteve — segundo vários analistas — mecanismos de controlo político, monetário, militar e económico. Por exemplo, a moeda CFA (franco‑CFA) foi apontada como um instrumento de dominação monetária, que mantinha os países africanos integrados de facto num sistema dominado por Paris. (Nofi Media)
As estratégias de “pactos invisíveis” incluíam nomeações de líderes africanos “amigos”, intervenção militar, presença empresarial francesa, extração de recursos com pouca contrapartida, redes de corrupção. A independência formal foi declarada — mas muitos passos para a verdadeira autonomia ficaram por dar. Um artigo recente refere que a “declaração de uma nova legalidade internacional” (isto é, o princípio da soberania pós‑colonial) coexiste com “o inverso” — isto é, práticas de dependência instituídas — e isso traduz literalmente uma relação de poder desigual. (Nofi Media)
No plano económico, essa estrutura implicou que muitos países africanos se mantivessem como exportadores de matérias‑primas, concentrados no nível mais baixo da cadeia de valor, sem que o desenvolvimento industrial, tecnológico ou de agregação de valor tivesse sido suficientemente promovido. A dependência nas decisões monetárias, nas parcerias externas, e nas infra‑estruturas definidas por terceiros perpetuou a lógica de “menos” que medeia a relação entre África e o mundo.
A lógica da inferiorização e o impacto simbólico
Quando analisamos o impacto simbólico dessa estrutura, percebemos que a inferiorização não é apenas económica ou política — é também cultural, educativa e psicológica. Por exemplo, ao persistir o discurso de que “a África não tinha história”, está‑se a negar agência, identidade e capacidade. Este discurso de negação foi identificado por historiadores como um mecanismo de marginalização da voz africana. (routledge.com)
À medida que esses sistemas de dominação invisível se consolidaram, a juventude africana foi frequentemente relegada a espectadora, ou a destinatária de programas de “ajuda” em vez de protagonista da mudança. A narrativa dominante muitas vezes colocava o continente como “problema” ou “mercado a conquistar” em vez de “actor a igualar‑se”.
A nova geração africana: não‑aceitação, mobilização e exigência de dignidade
Hoje, dispomos de evidência cada vez mais robusta de que a juventude africana — numerosa, conectada, informada — está a dizer “basta”. Um estudo‑análise da Al Jazeera Centre for Studies indica que a onda de protestos liderados por jovens em África é alimentada por frustrações comuns: desemprego, custo de vida elevado, corrupção, falta de representação e esperança. (Al Jazeera Centre for Studies)
Por exemplo, a geração mais jovem não aceita mais ser marginalizada: “a juventude africana já não aceita que as elites políticas continuem mais tempo no poder, que ignorem os seus direitos ou lhes ofereçam um futuro de precariedade.” (semafor.com)
Dados concretos:
Em África subsaariana, cerca de 70 % da população tem menos de 30 anos. (The EastAfrican)
Mais de 53 milhões de jovens não estão envolvidos em qualquer forma de emprego, educação ou formação. (The EastAfrican)
Um inquérito de 2024 revelou que três quartos dos jovens africanos disseram que era difícil arranjar emprego; dois terços estavam insatisfeitos com os seus governos por não criarem oportunidades suficientes. (context.news)
Os protestos recentes em vários países africanos mostram‑nos a expressão concreta dessa indignação — e da vontade de mudança. Jovens organizam‑se online, mobilizam‑se nas ruas, fazem uso de tecnologia para reivindicar voz, visibilidade e responsabilidade dos governantes. (stratnewsglobal.com)
Porque agora
Várias condições convergem para tornar este momento particularmente propício à mudança:
O aumento do acesso à internet e às redes sociais permitiu que a juventude africana se informasse, mobilizasse e conectasse sem depender dos meios tradicionais.
A consciência global dos direitos humanos, da corrupção, da justiça económica aumentou, e os jovens africanos a ela aderem.
A crise das velhas estruturas: crescimento desacelerado, dívida externa, desemprego crónico, precariedade — tudo isto alimenta a insatisfação e a urgência de mudança. Por exemplo, a dívida pública em alguns países africanos atingiu níveis elevados, gerando protestos. (Monitor)
A própria narrativa internacional está a mudar: a voz africana exige protagonismo, as parcerias estão a ser repensadas. Um artigo recente refere‑se ao “fim da Françafrique” anunciado como possível, devido à recusa crescente em aceitar relações de dependência. (Nofi Media)
Este “momento” não significa automaticamente que tudo vá mudar de repente — as resistências são enormes. Mas significa que a inércia dos últimos decénios está a ser questionada de forma sistemática e de baixo para cima.
O que significa “ser tratado no mesmo pé de igualdade”
Ser tratado no mesmo pé de igualdade significa várias coisas concretas:
Agência política e cidadã — que os cidadãos, especialmente os jovens, tenham voz real nas decisões, que as eleições sejam transparentes, e que o poder não seja monopolizado por elites imunes ao escrutínio.
Soberania económica — que os países africanos possam definir as suas políticas de recursos, de investimento, de tecnologia, sem depender exclusivamente de parceiros externos que impõem condições desiguais.
Desenvolvimento endógeno — que não apenas se extraia matérias‑primas, mas que se agregue valor local, que se invista em educação, indústria, tecnologia, para que a economia africana deixe de ser periférica.
Reconhecimento cultural e simbólico — que a história africana seja ensinada, valorizada, que as vozes africanas sejam protagonistas da sua própria narrativa, que não sejam meramente objecto de estudo alheio.
Justiça social e económica — que a juventude africana, com o seu potencial, não seja deixada para trás, que tenha emprego digno, formação adequada, partilha dos frutos do desenvolvimento, e não apenas o “ânsia de mudança”.
Quando essas condições deixarem de ser apenas aspirações e se tornarem políticas reais, poderemos dizer que África começa a ser tratada no mesmo pé de igualdade — não porque os parceiros externos a “favorecem”, mas porque há reciprocidade, respeito e reconhecimento.
Os obstáculos no caminho
Apesar da energia da juventude e da clareza das reivindicações, os obstáculos são muitos:
As estruturas de poder existentes em muitos países africanos resistem à mudança profunda — regimes prolongados, corrupção institucionalizada, redes de clientelismo.
A dependência externa, ainda forte em muitos setores: dívida, moeda, tecnologia, infra‑estruturas.
A fragmentação no continente: 54 países, múltiplos idiomas, diferenças políticas, económicas e culturais — torna mais difícil uma mobilização homogénea ou uma política regional concertada.
A narrativa internacional e doméstica que ainda sustenta percepções de “continente problema” ou “beneficiário” em vez de “actor”.
A transição entre protesto e reforma: mobilizar é uma coisa, mudar institucionalmente é outra. Sem reformas profundas, a insatisfação tende a reincidir.
A juventude como motor da mudança
Se a juventude africana representa o “recurso mais importante” do continente — mais até do que as suas riquezas minerais — então investir nessa geração significa apostar no futuro. Políticas que a envolvam, que a formem, que canalizem a sua energia em inovação, empreendedorismo, participação cívica, são essenciais.
Alguns caminhos concretos:
Reformar o sistema educativo para refletir a história africana, fomentar o pensamento crítico, a literacia digital e as competências do século XXI.
Promover indústria, tecnologia e inovação local — para que a extração de recursos não seja o fim da cadeia de valor.
Transparência e responsabilização política — eleições verdadeiras, liberdade de expressão, imprensa independente, participação juvenil nas decisões.
Diversificação de alianças internacionais — não depender de um único parceiro, negociar termos que respeitem a igualdade.
Inclusão e participação das mulheres jovens, das minorias, das zonas rurais — para que a mobilização não fique apenas nas cidades ou numa elite.
Conclusão
Hoje, mais do que nunca, é urgente que se passe da retórica para a prática. Que a independência política se traduza em autonomia económica; que a juventude se torne protagonista e não espectadora; que a África seja vista, e se veja a si própria, como actor global, não subordinado.
A mensagem que ecoa da nova geração africana é clara: «Queremos dignidade. Queremos igualdade. Queremos participar na história, não apenas ser mencionados nela.» O reconhecimento disso, por parte dos parceiros internacionais, das elites políticas africanas e das sociedades civis, é o primeiro passo. Mas somente a tradução dessa mensagem em resultados concretos — empregos dignos, reforma de sistemas, maior valor local dos recursos, soberania política — garantirá que o título deste artigo não seja apenas aspiracional, mas realidade.
É, pois, hora de África ser tratada no mesmo pé de igualdade, não por caridade, mas porque é justo. Porque é correcto. Porque já o merece.
Fontes e referências


É hora de África ser tratada no mesmo pé de igualdade
Por Paulo Muhongo
💬 E você, o que pensa?
Precisa mesmo África de investimentos estrangeiros para se desenvolver, ou bastaria gerir com sabedoria as imensas riquezas naturais que já possui?
É hora de África ser tratada no mesmo pé de igualdade
A juventude africana desperta e exige respeito. É hora de África ser tratada no mesmo pé de igualdade, longe das políticas neocoloniais da Françafrique. Inspirada pela sua história e riqueza cultural, a nova geração africana luta por dignidade, independência e igualdade real no cenário mundial.
POLITICA
11/3/20257 min ler
