Na manhã de 3 de Novembro de 2025, a ANPG (Agência Nacional de Petróleo, Gás e Biocombustíveis) e a Shell assinaram o contrato para explorar e desenvolver 17 blocos em águas ultra profundas no offshore angolano, com um investimento inicial estimado em quase mil milhões de dólares, aproximando‑se dos 860,5 milhões de euros. Segundo o presidente da ANPG, este acordo marca o regresso da Shell a Angola após um período de ausência, e integra‑se na estratégia do Estado para manter a produção acima de um milhão de barris por dia.
Os blocos em causa cobrem áreas que incluem blocos tradicionais (por ex. blocos 19, 34 e 35) e novas fronteiras de exploração em águas ultra profundas. Este momento representa um ponto de viragem para Angola, que enfrenta uma queda da produção petrolífera e procura revitalizar o sector para gerar receitas, atrair investimento externo, promover emprego e introduzir tecnologia nacional. Por outro lado, para a Shell trata‑se de uma oportunidade de aceder a reservas relativamente menos concorridas, com elevado potencial técnico e retorno possível.
Por que regressar agora?
A decisão da Shell de regressar a Angola não é puramente simbólica. Podem identificar‑se três grandes linhas de interesse:
Reservas e potencial geológico significativo
As bacias ultra profundas angolanas são consideradas fronteira de exploração, com risco técnico elevado, mas também com retorno potencial relevante. A conjugação de águas profundas, elevada tecnologia e companhias internacionais cria interesse.Diversificação geográfica e técnica
Num contexto global em que muitos activos petrolíferos maduros sofrem declínio, grandes empresas procuram novos territórios onde possam alocar capital, tecnologia e know‑how. Angola oferece essa possibilidade: menos concorrência, potencial elevado e uma necessidade clara de novos investimentos.Condições regulatórias mais atractivas e aposta estatal
Angola implementou reformas para tornar o sector mais atraente à entrada de capitais estrangeiros, com melhor regime fiscal e concessional. Isso reduz parcialmente barreiras à entrada e torna o risco de investimento mais aceitável.
Adicionalmente, existe um componente estratégico de imagem e posicionamento global: a Shell, reforçando a sua presença em África e nos activos de frontier, projeta‑se num mundo em transição energética, mantendo relevância mesmo enquanto o mundo debate o fim dos combustíveis fósseis.
Em suma, a Shell vê Angola como a conjugação de oportunidade técnica + vantagem regulatória + necessidade nacional de investimento.
Ambições e condições
Do lado do Estado angolano, este contrato com a Shell representa várias promessas esperadas:
Fluxo de capital fresco e introdução de tecnologia de perfuração ultra profunda, bem como criação de emprego directo e indirecto no sector petrolífero.
Manutenção de produção, ou ao menos de estabilidade da produção petrolífera, para que as receitas fiscais e de exportação se mantenham robustas.
Impulso económico, quer através de royalties, bónus de assinatura de contrato, ou via efeitos multiplicadores da cadeia petrolífera (fornecedores locais, serviços, infraestruturas).
Reforço da imagem internacional de Angola como produtor relevante no Atlântico Sul, a mostrar que continua capaz de atrair grandes companhias internacionais.
Potencial para usar os ganhos petrolíferos como alavanca para outros sectores, se for bem gerido.
Contudo, esse conjunto de ambições exige que o governo assuma papel activo e estratégico na negociação, monitorização e execução dos contratos para que o benefício seja mais alargado.
Desafios e riscos que não podem ser ignorados
Dependência petrolífera e vulnerabilidade externa
Angola permanece fortemente dependente das receitas petrolíferas. O sector petrolífero representa cerca de 75 % das receitas governamentais.
Explorar em águas ultra profundas implica custos muito mais elevados, o risco técnico e financeiro é elevado, e se o mercado global do petróleo sofrer choque ou se a procura decrescer, Angola ficará vulnerável.Declínio da produção actual
Segundo dados de analistas do Banco Fomento Angola, a produção combinada de petróleo e gás caiu cerca de 10,2 % no segundo trimestre de 2025 face ao mesmo período do ano anterior. Um relatório do CINVESTEC alerta que “o panorama para a produção de petróleo continua muito negativo até ao final da legislatura de 2032”. Ou seja, mais investimento não resolve automaticamente o problema da maturidade dos campos existentes.
Transparência, governação e redistribuição
Organizações de monitorização dos extractivos alertam que Angola ainda tem lacunas significativas na divulgação de dados de contratos, receitas, e participações. Isto limita a capacidade da sociedade civil de acompanhar se o benefício dos recursos petrolíferos é realmente repartido.
Sem transparência, existe risco de que os lucros rentabilizem sobretudo as grandes empresas e poucos grupos nacionais, perpetuando desigualdades.Riscos ambientais e sociais
Águas ultra profundas implicam perfuração a milhares de metros de profundidade, com maiores desafios técnicos e riscos elevados de derrames ou acidentes ambientais. O Estado deve impor padrões exigentes, planos de contingência robustos, e garantir que as comunidades locais são ouvidas e beneficiam, não apenas são afetadas.
Risco de conjuntura energética global
Com a transição energética em curso, existe o risco de que o investimento pesado em petróleo não gere o retorno esperado a longo prazo. Como o analista David Thomson afirmou, “esperamos que após 2030 a produção de petróleo decline significativamente”. Portanto, Angola precisa de pensar além da produção de ontem.
Colocando o investimento no contexto global e nacional
Contexto nacional
Angola, apesar de ser o segundo maior produtor de petróleo da África subsaariana, regista declínio significativo dos seus níveis de produção desde o pico de cerca de 2 milhões de barris por dia em 2008 para cerca de 1 milhão em 2024.
A presidência de João Lourenço sublinhou, na conferência Angola Oil & Gas 2025, que é necessário transformar os recursos petrolíferos em crescimento sustentado e a longo prazo.
Ao mesmo tempo, o país saiu da OPEC em dezembro de 2023, argumentando que o regime de quotas não beneficiava Angola.Perspectiva internacional
No panorama internacional, analistas como aqueles da Oxford Economics projeta‑ram um crescimento modesto da produção angolana em 2025, face a previsões mais pessimistas de outras entidades.
Além disso, a aposta no gás natural é emergente: segundo analistas, Angola poderá aumentar a produção de gás mais de 20% nos próximos cinco anos.
Esta realidade coloca o investimento da Shell num contexto em que Angola procura não apenas extrair mais petróleo, mas reinventar parte do seu modelo energético.Testemunhos de analistas e organizações
José Barroso, Secretário de Estado para Petróleo e Gás de Angola, declarou que “o sector petrolífero continua rentável e não parou de crescer e desenvolver‑se no nosso país” ao lançar a ronda de blocos 2025.
Analistas do Banco Fomento Angola afirmam que “o sector petrolífero contraiu‑se cerca de 10,2% no segundo trimestre de 2025” face ao mesmo período de 2024, o que reforça o carácter estrutural da queda.
No plano internacional, o analista Jimmy Boulter da Enverus afirma que “o verdadeiro teste para a monetização do gás em Angola são os campos Quiluma e Maboqueiro” ligados à nova estratégia gasista.
Um estudo académico recente (Cagiza et al.) mostra que, mesmo com apoio de entidades de financiamento para o desenvolvimento (DFIs), o impacto a longo prazo depende de reformas domésticas, governação reforçada e coordenação estratégica.
Estes testemunhos combinam optimismo com cautela: existe potencial, mas também dependência de execução eficaz.
O que o governo de Angola pode e deve fazer
Para garantir que este investimento da Shell se traduza em benefício real para o país e para a população, recomenda‑se:
Negociar contratos sólidos e equilibrados: o governo deve assegurar que os contratos contem cláusulas de partilha de receitas justas, emprego local obrigatório, transferência de tecnologia, e mecanismos de revisão ao longo do tempo.
Transparência total e participação pública : publicação de contratos, relatórios de receitas, custos, e impactos ambientais de forma acessível à sociedade civil. Só com monitorização pode haver responsabilização.
Diversificação da economia : usar parte das receitas e da presença petrolífera para desenvolver sectores como a agricultura, energia renovável, pequena indústria, educação e infra‑estrutura. Como alerta o artigo de Le Monde, Angola já reconhece que está numa “era pós‑petróleo”.
Protecção ambiental e comunitária : criar legislação e fiscalização rígida para actividades offshore, assegurar planos de contingência, e que as comunidades costeiras beneficiem com emprego, serviços e infra‑estruturas.
Planeamento de longo prazo para cenários adversos: preparar‑se para cenários de queda dos preços do petróleo ou redução da procura global: colocar parte das receitas em fundos soberanos, investir em capital humano e infra‑estruturas duradouras.
Entre oportunidades e armadilhas
O regresso da Shell a Angola representa uma boa notícia — um sinal de que o país continua no radar das grandes companhias petrolíferas internacionais. Mas precisa de ser visto como janela de oportunidade, não como garantia automática de sucesso.
Se Angola conseguir canalizar este momento para reforçar competências nacionais, diversificar a economia e melhorar a governação, poderá emergir mais forte. Por outro lado, sem contrapartidas sólidas, existe o risco de repetir ciclos antigos: grande investimento estrangeiro, pouca redistribuição nacional, elevada dependência externa e pouca diversificação.
O verdadeiro teste vai muito além da assinatura do contrato: reside na execução, no acompanhamento, na responsabilização. Em última instância, símbolos não pagam escolas, hospitais ou estradas — o que importa é o impacto tangível no desenvolvimento humano e económico do país.
Conclusão
O acordo entre Angola e a Shell assinala um marco importante na indústria petrolífera angolana: promete exploração de águas ultra profundas, com elevado potencial e tecnologia.
Contudo, essa promessa traz consigo um conjunto de desafios ao mesmo nível: transparência, governança, benefício social, proteção ambiental, diversificação económica e perspetiva a longo prazo.
Se for bem aproveitada, esta oportunidade pode transformar‑se num momento histórico de viragem para Angola. Se for mal gerida, pode tornar‑se mais um contrato em que os lucros escorrem para poucos e o risco de dependência se intensifica.
Agora, mais do que nunca, cabe ao Estado, à sociedade civil, aos investidores e às comunidades locais colaborar para que o investimento seja um meio e não um fim — e para que o petróleo seja um trampolim para algo maior e não uma âncora
Fontes
Lusa, “Oil production outlook ‘very negative’ until end of 2032 – report”, 04/09/2025. aman-alliance.org
Lusa, “Q2 oil, gas production down 10% YoY – economists”, 21/07/2025. aman-alliance.org+2angolanminingoilandgas.com+2
Lourenço chamada a aproveitar o petróleo para crescimento a longo prazo, APA‑News, 04/09/2025. APAnews - Agence de Presse Africaine
Oxford Economics, “Angola’s Oil Production Set for Modest Growth in 2025 Forecasts”, 2025. angolanminingoilandgas.com
Trade.gov “Angola Oil and Gas Industry Growth” (actualização 2025). trade.gov
OilPrice.com, “Post‑OPEC Angola: The Quota’s Gone, the Decline Isn’t”, 23/10/2025. OilPrice.com
MarketScreener/Reuters, “Angola seeks gas growth as oil output flatlines despite OPEC exit”, 2025. MarketScreener
360 Angola, “Oil Sector Remains Profitable – José Barroso”, 2024. 360angola.com
Academia: Cagiza, “De‑Risking Development in Sub‑Saharan Africa: A Qualitative Study of Investment Dynamics in Angola”, 2025. arxiv.org


O regresso da Shell a Angola com 860,5 milhoões de Euros
Por Paulo Muhongo
💬 E você, o que pensa?
Considerando todas as variáveis económicas, ambientais, sociais e de governança, qual mecanismo você considera mais urgente implementar em Angola para garantir que este novo investimento da Shell beneficie realmente a população local e não apenas a produção petrolífera?
Como o governo de Angola vai transformar o investimento de 860,5 milhões da Shell em desenvolviment
Shell investe 860,5 milhões de euros em Angola. Saiba como o governo planeia gerir este investimento milionário e transformá-lo em desenvolvimento económico sustentável para o país.
POLITICAECONOMIA
11/4/20258 min ler
