A pergunta pode parecer provocatória, quase absurda, mas tornou-se tema de conversas políticas, debates académicos e discussões inflamadas nas redes sociais:
o que seria mais útil para Angola, investir 12 milhões de euros na mitigação da seca do Cunene ou gastar o mesmo valor para trazer Lionel Messi ao país para um evento internacional?

A resposta parece óbvia, e é. Mas a grande reportagem que se segue revela que, por detrás de uma pergunta aparentemente simples, esconde-se o retrato de um país onde as prioridades nacionais são muitas vezes contraditórias, onde o simbolismo político por vezes sobrepõe necessidades humanas básicas, e onde o custo do prestígio pode ser medido em vidas.

Ao longo dos últimos meses, percorremos as zonas mais afetadas pela seca no sul de Angola, consultámos especialistas em clima, economia, segurança alimentar e política pública, e ouvimos as populações que vivem o drama da escassez de água. O resultado é um retrato complexo, e profundamente humano, duma realidade que exige reflexão urgente.

Cunene: a província onde o tempo se mede em sede

Quem chega ao Cunene percebe rapidamente que aqui o tempo não se conta em horas ou dias, mas em caminhadas para procurar água.

As temperaturas ultrapassam facilmente os 40 °C. A terra que um dia foi fértil está agora gretada, dura como pedra. A paisagem, em muitos pontos, parece um deserto. O rio Cunene — fonte de vida de que dependem milhares de famílias — recua ano após ano, deixando um rasto de assoreamento e abandono.

Foi aqui que encontramos Maria Ndapewa, 34 anos, mãe de cinco filhos.

“Acordo às três da manhã para caminhar seis quilómetros. Se chego tarde, a água já acabou. Às vezes, voltamos com o balde vazio. Nesses dias, ficamos calados. Não há forças para chorar.”

Maria recebe-nos numa aldeia onde o sol bate sem piedade e onde a sombra é luxo raro. O poço comunitário está seco há três meses. A bomba solar avariou e ninguém sabe quando será reparada.

Segundo dados oficiais publicados em 2024, pelo menos 867 mil pessoas no Cunene dependem de apoio humanitário direto devido à seca. São números que ultrapassam a escala humanitária habitual e que, para muitos especialistas, representam uma crise prolongada com impactos que se estenderão por gerações.

A seca em números que não cabem na imaginação

  • 867.322 pessoas necessitam de apoio (dados oficiais provinciais).

  • Mais de 133 mil famílias perderam as suas fontes de rendimento.

  • Em algumas áreas, a taxa de malnutrição aguda infantil ultrapassa os 20% — um nível considerado de emergência pela ONU.

  • Entre 1,2 e 2,2 milhões de pessoas no sul de Angola vivem sob stress hídrico extremo.

  • Milhares de cabeças de gado morreram nos últimos cinco anos.

  • As escolas registam taxas de abandono elevadas, pois as crianças acompanham os pais nas longas caminhadas em busca de água.

Para José Nduvah, professor de Geografia, que entrevistámos em Ondjiva: 

“A seca deixou de ser um fenómeno excecional. Tornou-se uma rotina. O que muda hoje é apenas a intensidade.”

12 milhões de euros: o que representam no terreno?

Antes de responder à questão “Messi ou Cunene?”, convém entender o que 12 milhões de euros podem significar para uma província assolada pela seca.

Consultando engenheiros hidráulicos, economistas e organizações de desenvolvimento, chegámos às seguintes estimativas:

Com 12 milhões de euros, seria possível:

  • Construir entre 120 e 180 sistemas de abastecimento de água, com bombas solares e reservatórios.

  • Reabilitar mais de 250 furos atualmente inoperacionais.

  • Criar programas de irrigação sustentáveis para pelo menos 6.000 famílias agricultoras.

  • Implementar um programa de nutrição infantil capaz de apoiar 200 mil crianças durante um ano.

  • Criar sistemas de micro-barragens para captação de águas das chuvas.

  • Construir centros comunitários de resiliência climática.

  • Financiar equipes de manutenção permanente — evitando que as infraestruturas se percam após poucos anos.

Messi: um fenómeno global, mas e depois?

Falar de Messi é falar de uma das figuras mais reconhecidas no planeta. Um evento com a sua presença pode gerar:

  • manchetes internacionais,

  • grande visibilidade mediática,

  • promoção turística,

  • criação de produtos derivados,

  • impacto na juventude amante do futebol.

Há países que investiram milhões para o trazer a eventos temporários, conferências, campanhas publicitárias ou embaixadas desportivas.

Mas o impacto é efémero.

O economista António Sobrinho, da Universidade Agostinho Neto, explica-nos:

“É impossível comparar prestígio mediático com serviços essenciais. Messi pode gerar entusiasmo, mas a água salva vidas. Uma fotografia passa; uma barragem fica.”

O debate nacional: prioridades e contradições

A comparação entre Messi e a seca — embora caricatural — abriu feridas profundas no debate público angolano.

1. O prestígio político

Há quem defenda que trazer uma figura global pode reposicionar Angola no mundo, atrair investimentos e reforçar o “soft power” nacional.

2. A crítica moral

Para outros, seria uma afronta num país onde:

  • a taxa de pobreza no sul atinge valores críticos,

  • a fome continua uma ameaça,

  • e a infraestrutura básica ainda está muito aquém das necessidades.

3. A dimensão simbólica

O sociólogo Elias Katali sublinha:

“A questão não é Messi. É o que simboliza priorizar o espetáculo enquanto milhares de cidadãos caminham quilómetros para beber água turva.”

Uma viagem pelas aldeias esquecidas

A gravidade do que está em causa torna-se evidente ao percorrerem as zonas mais afetadas.

O silêncio das cabras mortas em Cahama

Aqui, o chão está coberto de ossos. O pastor Mateus, 61 anos, conta que perdeu 42 cabras num único mês.

“Fui pastor toda a vida. Nunca vi isto. Nunca.”

Cuvelai: a escola vazia

A escola primária tem seis salas, mas em cinco delas não há alunos.
A diretora, Helena Kapitango, explica: “Estão a caminhar com as mães. Procurar água tornou-se a primeira disciplina do dia.”

A economia da seca: um país que perde milhões

Segundo especialistas:

  • Cada ano de seca prolongada custa ao país entre 350 e 500 milhões de euros em perdas agrícolas, morte de gado e redução de produção.

  • A migração interna aumenta.

  • A dependência de ajuda externa cresce.

  • O custo futuro da reconstrução é exponencialmente maior do que o da prevenção.

Messi ou água? A resposta das próprias comunidades

Perguntámos a dezenas de residentes do Cunene: “Preferiam ver Messi em Angola ou ter água na aldeia?”

A resposta foi unânime, e algumas foram dolorosas, como a de Manuel, 12 anos“Messi é o meu jogador preferido… mas se ele vier, ele bebe água. Eu não.”

O que revela esta comparação?

O dilema “Messi ou a seca” diz mais sobre as prioridades políticas do que sobre o craque argentino.

Revela:

  • um país que precisa urgentemente de fortalecer as suas políticas públicas,

  • a necessidade de substituir gestos simbólicos por investimentos estruturais,

  • e o imperativo moral de colocar vidas humanas acima de qualquer espetáculo.

Em termos de impacto:

  • Messi inspira.

  • A água salva.

E entre inspiração e sobrevivência, a escolha deveria ser clara.

Nota para leitor: 

Esta reportagem não pretende demonizar o desporto nem figuras internacionais. Pretende, isso, sim, relembrar que um país é julgado pelas suas prioridades.
E que, em 2025, nenhuma criança deveria caminhar seis quilómetros para beber água lamacenta enquanto milhões são discutidos para eventos de glamour.

Investir 12 milhões de euros na seca do Cunene é melhor do que ter Messi no país?

Por Paulo Muhongo

💬 E você, o que pensa?

Como o Estado angolano poderia realmente apoiar, proteger e valorizar os nossos criadores, garantindo que continuem a enriquecer a identidade cultural do país?

Investir na seca do Cunene ou trazer Messi a Angola? Análise das prioridades nacionais

Descubra o dilema entre investir 12 milhões de euros na seca do Cunene ou trazer Lionel Messi a Angola. Uma reportagem que analisa prioridades nacionais, impacto humanitário e escolhas políticas.

POLITICAECONOMIA

11/19/20255 min ler