O poder que foge da própria terra
Em várias capitais africanas, a população sabe que os seus líderes raramente são vistos nos hospitais públicos. Sabe também que os filhos dos governantes estudam fora do país. Esta distância entre quem governa e quem é governado tornou-se tão normal que quase deixou de chocar. No entanto, há casos que ultrapassam todos os limites e revelam a profundidade de uma crise moral que atravessa todo o continente.
Paul Biya, Presidente dos Camarões há mais de quatro décadas, vive grande parte do ano entre França e Suíça. O próprio ato de governar o país tornou-se um exercício remoto. Durante campanhas eleitorais, discursos são lidos por terceiros e panfletos são distribuídos em seu nome. O povo camarones convive com a figura de um chefe de Estado ausente, que poucas vezes pisa o solo da nação que dirige.
José Eduardo dos Santos, que liderou Angola durante trinta e oito anos, terminou a vida numa clínica em Barcelona. Morreu longe da cidade que governou durante décadas, longe das ruas, longe da promessa de um país independente e próspero, longe da saúde pública que nunca conseguiu fortalecer.
Estes casos não são isolados. Muitos líderes africanos recusam viver com as consequências das suas próprias políticas. Governam países onde os sistemas de saúde falharam, mas tratam-se em hospitais estrangeiros. Dirigem nações onde a educação pública é fraca, mas enviam os filhos para escolas e universidades europeias. A mensagem que transmitem é clara: não confiam naquilo que oferecem ao povo.
O poder ausente e a doença do privilégio
Paul Biya é o símbolo extremo da desconexão entre liderança e responsabilidade. Aos noventa e dois anos, continua a vencer eleições e a governar à distância. O país presencia um fenómeno inédito: um Presidente que raramente está presente fisicamente dentro das suas fronteiras. Biya envelhece confortavelmente em residências suíças e francesas, rodeado de equipamentos médicos avançados.
Para o cidadão comum camarones, esta realidade é dolorosa. Os hospitais públicos sofrem com a crónica falta de equipamentos, profissionais mal pagos e infraestruturas degradadas. Enquanto isso, o Presidente viaja num avião presidencial para receber cuidados médicos em Genebra. Como é possível que, durante décadas de governação, não tenha sido capaz de criar um sistema de saúde digno de confiança?
Em Angola, José Eduardo dos Santos governou um país rico em petróleo e diamantes, mas o sistema de saúde pública permaneceu frágil. Quando adoecia, procurava atendimento fora do país. Morreu em Barcelona, um ato simbólico que denuncia o fracasso da governação e da confiança no próprio sistema.
Outros líderes africanos seguem padrões semelhantes. Muhammadu Buhari, Presidente da Nigéria, passou longos períodos no Reino Unido para tratamento médico. Robert Mugabe, no Zimbábue, deslocava-se regularmente a Singapura. Ali Bongo Ondimba, Presidente do Gabão, foi tratado no estrangeiro após um AVC. Levy Mwanawasa e Michael Sata, ambos da Zâmbia, morreram em clínicas fora do país. Estes exemplos evidenciam que não se trata de casos isolados, mas de um padrão generalizado.
Educação pública negligenciada e filhos no estrangeiro
Se a saúde pública é frágil, a educação pública sofre igualmente com negligência. Relatórios da UNICEF e da UNESCO mostram que quatro em cada cinco crianças africanas de dez anos não conseguem ler nem compreender um texto simples. Milhões de jovens chegam à adolescência sem competências mínimas, refletindo décadas de subinvestimento em ensino público.
Ao mesmo tempo, filhos de políticos africanos estudam nas universidades mais prestigiadas da Europa ou dos Estados Unidos. Isabel dos Santos, filha de José Eduardo dos Santos, estudou em Inglaterra. Faure Gnassingbé, Presidente do Togo, frequentou universidades em França e nos EUA. Filhos de políticos nigerianos completaram licenciaturas no Reino Unido enquanto escolas públicas sofriam greves e falta de recursos. No Quénia, filhos de ministros e governadores formaram-se no exterior.
Esta contradição transmite uma mensagem clara: a elite africana não confia no ensino que governa. Enviar os filhos para universidades estrangeiras confirma que o sistema educativo doméstico não é digno de confiança.
Testemunhos simbólicos
Samuel, estudante camarones de 19 anos, afirma que nunca viu um Presidente visitar um hospital público. As salas de emergência estão degradadas, faltam medicamentos e os profissionais lutam para atender todos os pacientes. Quando Samuel vê notícias de Paul Biya a ser tratado na Europa sente revolta. Pergunta-se: se o Presidente não confia nos hospitais daqui, como poderá o povo confiar?
Em Luanda, Maria, mãe de três filhos, conta que tentou matricular o filho numa escola pública e encontrou turmas superlotadas. Os professores estão cansados, os livros chegam tarde e as bibliotecas inexistem. Quando vê filhos de ministros a estudar em Londres ou Lisboa, sente a distância crescente entre governantes e governados.
Estes testemunhos representam milhões de africanos que vivem diariamente o peso de sistemas públicos fracos enquanto as elites desfrutam de serviços de qualidade no estrangeiro.
A raiz do problema
A primeira raiz é a centralização extrema do poder. Muitos líderes africanos permanecem décadas no cargo, criando distanciamento natural entre governante e governado. A segunda raiz é a herança colonial. Durante o período colonial, o padrão de qualidade estava sempre ligado ao país colonizador. A educação e os serviços de saúde eram superiores na Europa. A terceira raiz é a falta de responsabilização. Sem oposição forte nem fiscalização institucional, não há incentivo para investir em hospitais e escolas.
Análise internacional
A dependência das elites africanas de serviços europeus cria um fluxo económico e político que beneficia o Ocidente. Clínicas e hospitais suíços e franceses recebem milhões em tratamentos, universidades europeias lucram com alunos africanos. Esta dependência mantém influência externa sobre as decisões políticas e perpetua ciclos de subdesenvolvimento.
O preço para os povos africanos
O resultado desta fuga da elite é devastador. A juventude africana cresce sem referências. Vê os líderes a fugir da terra que governam. Vê que a solução para qualquer problema é sempre a Europa. Vê filhos da elite a serem preparados para ocupar o poder enquanto os filhos do povo enfrentam escolas sem recursos. O ciclo destrói a confiança coletiva. Sem confiança, não há desenvolvimento.
Casos adicionais de líderes africanos
Muhammadu Buhari (Nigéria): tratamento médico prolongado no Reino Unido, apesar de prometer acabar com “medical tourism”.
Robert Mugabe (Zimbábue): deslocações regulares a Singapura para cuidados de saúde.
Ali Bongo Ondimba (Gabão): tratado na Europa após AVC.
Levy Mwanawasa e Michael Sata (Zâmbia): faleceram em clínicas estrangeiras.
Faure Gnassingbé (Togo): educação nos EUA e França antes de assumir a presidência.
Filhos de políticos nigerianos e quenianos: estudos superiores no Reino Unido e EUA.
Estes exemplos reforçam que o fenómeno da ausência da elite não é isolado, mas estrutural e transversal a vários países africanos.
O futuro possível
A mudança não virá de cima. Virá da pressão popular e de gerações jovens que já não aceitam líderes ausentes nem sistemas públicos quebrados. Virá quando os africanos exigirem que os seus governantes usem os serviços públicos que administram. Quando os hospitais públicos forem dignos, quando as escolas públicas forem de qualidade, a confiança retornará. A verdadeira independência africana começará quando a elite acreditar nos sistemas que construiu e fizer deles prioridade.
Conclusão
Biya, Dos Santos, Buhari, Mugabe, Bongo, Sata e outros não são apenas indivíduos. São símbolos de uma elite que transformou o poder em passaporte e governou para fora em vez de governar para dentro. A África só evoluirá quando os seus líderes aprenderem a confiar nos hospitais, escolas e universidades que eles próprios desenvolvem. Só assim o continente poderá curar as suas feridas históricas e construir um futuro para todos, não apenas para quem tem privilégios.
A mensagem final é clara: enquanto os governantes africanos continuarem a fugir do país que lideram, a África continuará a repetir os mesmos erros. A verdadeira transformação começa com confiança no próprio povo e nos próprios sistemas.


Líderes Africanos não Têm Confiança em Nenhum Sistema Instalado por Eles
Por Paulo Muhongo
💬 E você, o que pensa?
Até quando a África continuará a esperar que os seus líderes acreditem nos sistemas que eles mesmos deveriam construir?
Líderes africanos não confiam nos seus sistemas
Líderes africanos não confiam nos seus sistemas de saúde e educação que construíram. Casos como Paul Biya e José Eduardo dos Santos revelam a distância entre poder e povo.
POLITICAECONOMIA
11/7/20256 min ler
