A presença de Lionel Messi em Luanda durante as celebrações dos 50 anos da independência de Angola funcionou como imagem poderosa e imediata: herói do futebol, flashes, plateias e cobertura global. Essa imagem, porém, colidiu com outra imagem igualmente nítida: filas em centros de assistência, preços que apertam orçamentos familiares e relatos de repressão em manifestações recentes. Por isso a questão que emergiu com força foi simples e brutal: faz sentido que um Estado em dificuldade social invista milhões para trazer uma equipa estrangeira cujo capitão é uma das maiores celebridades do planeta?
A resposta da sociedade civil angolana tem sido contundente. Diversas organizações enviaram cartas abertas e apelos públicos pedindo cancelamento ou, na falta disso, transparência e contrapartidas sociais claras. Líderes religiosos e ativistas classificaram os gastos como escandalosos. Observadores internacionais questionaram a legitimidade ética do acto. No centro desta controvérsia está uma figura que poderia usar o seu prestígio para chamar a atenção para quem mais precisa ou para condicionar a sua presença a medidas concretas de solidariedade. Messi não o fez de forma visível até ao momento em que escrevo.
Os números e a opacidade
Os valores apontados pela imprensa variam, o que por si revela opacidade. Manchetes de diferentes meios citam montantes entre seis milhões de euros e valores muito superiores, quando se contabilizam obras no estádio e despesas associadas. Reportagens recentes referiram cerca de doze milhões de euros e também estimativas mais altas em alguns canais. A simples oscilação nas cifras coloca duas questões essenciais: quanto custou realmente e quem prestará contas? A resposta tem implicações políticas e morais claras.
A opacidade fragiliza qualquer narrativa oficial sobre benefício público. Se o montante total for elevado como relatado por alguns meios, cada euro gasto no espectáculo tem um custo de oportunidade brutal: poderia sustentar programas de nutrição, reabilitar centros de saúde, abastecer água potável em comunidades carentes ou financiar programas de emergência para famílias em risco de desnutrição.
Testemunhos e vozes nacionais
As críticas mais directas vieram da sociedade civil organizada em Angola. Uma carta aberta conjunta da sociedade civil angolana foi dirigida à Federação Argentina de Futebol e ao próprio conjunto argentino, apelando ao cancelamento do amistoso por razões de dignidade e legitimidade cívica. Essa carta foi subscrita por organizações que operam junto de comunidades e que conhecem a realidade social no terreno.
Florindo Chivucute, director executivo da Friends of Angola, participou em protestos e falou publicamente sobre o que considera um gasto desajustado face à realidade do país. Ele tem sido uma das vozes mais activas no exterior, mobilizando apoios e chamando a atenção de parlamentos e instituições internacionais para o contraste entre luxo e necessidade. Chivucute afirmou que os recursos investidos poderiam ser melhor canalizados para aliviar necessidades básicas.
Líderes religiosos também se manifestaram. O padre Celestino Epalanga classificou a despesa como escandalosa e chegou a usar termos fortes para qualificar o gasto público num contexto de fome e precariedade. Para a comunidade eclesiástica, a escolha de prioridades do Estado revela um problema moral profundo.
Essas vozes têm peso moral e directo acesso às comunidades mais afectadas. Elas não representam apenas um descontentamento politico; representam relatos de famílias que enfrentam insegurança alimentar e de organizações que trabalham na linha da frente para mitigar sofrimento.
Especialistas internacionais e o argumento do soft power
Especialistas em políticas públicas e direitos humanos chamam atenção para algo mais do que o valor monetário: o uso do desporto como instrumento de soft power. Eventos grandiosos podem melhorar a imagem externa de um governo quando isto convém, sem que haja transformações estruturais internas. Em contextos de falta de prestação de contas, a legitimidade simbólica que uma celebridade confere ao anfitrião é política por si só. Observadores internacionais apontaram que esse tipo de investimento tem baixo retorno social imediato e pode ser percebido como mera propaganda se não vier acompanhado de medidas sociais reais.
Organizações de direitos humanos documentaram o uso excessivo de força durante manifestações relacionadas com aumentos de preços e outras medidas. Essa pista de contexto é essencial para compreender a sensibilidade da crítica: não se trata apenas de pedir economia, mas de não dar palcos a regimes que reprimem dissidência. Quando uma celebridade aceita participar, ganha o regime um atestado implícito de normalidade, mesmo quando a situação doméstica é grave.
Testemunhos internacionais e analogias entre atletas conscientes
Em outros momentos, atletas transformaram a sua visibilidade em pressão política positiva. Marcus Rashford, por exemplo, mobilizou-se no Reino Unido contra a fome infantil, fazendo campanhas que levaram o governo a recuar em políticas que deixariam crianças sem refeições. Megan Rapinoe defendeu direitos humanos e igualdade salarial, aparecendo em tribunas políticas e mediáticas para amplificar causas sociais. Esses exemplos mostram que o mundo do futebol já tem precedentes de atletas que assumem responsabilidades públicas e que podem condicionar a sua participação por razões éticas. Referir estes exemplos não é acusar Messi directamente de inércia, mas demonstrar que a escolha de ficar calado ou de negociar contrapartidas é uma decisão possível e que tem precedentes.
No caso angolano não encontramos, nas fontes públicas, declarações públicas de jogadores de topo a criticar Messi pela sua presença. Isso pode reflectir diferenças culturais, estratégicas de comunicação, ou simplesmente o facto de muitos atletas evitarem envolver-se em temas políticos sensíveis. A ausência de uma condenação pública por parte de pares não retira a validade das críticas feitas por organizações locais que vivem a realidade no terreno.
O que Cristiano Ronaldo faria nessa situação?
A pergunta sobre se Cristiano Ronaldo aceitaria receber milhões nas mesmas circunstâncias é legítima, mas tem de ser respondida com cautela. As pistas que o historial público de Ronaldo nos fornece são ambíguas. Por um lado, Ronaldo tem um historial de doações e envolvimento em causas humanitárias pontuais. Por outro lado, a sua carreira também é marcada por acordos comerciais de alto valor com clubes, selecções e patrocinadores. É plausível que, confrontado com um convite milionário, e sem pressão pública intensa, qualquer atleta aceite por razões profissionais e financeiras. Todavia, sob forte pressão mediática ou com contrapropostas que liguem a sua participação a iniciativas sociais concretas, é igualmente plausível que um atleta da sua fama aceite condicionar a presença. O facto é que só uma declaração pública do próprio resolveria a dúvida. Enquanto isso, a questão permanece uma hipótese plausível, não uma conclusão.
As consequências políticas internas
Os governos que apelam para espetáculos de massas correm dois riscos estratégicos. O primeiro é que a população perceba o evento como afronta e que o efeito pretendido de legitimação reverta para erosão de credibilidade. O segundo é que a existência de actos de grande visibilidade sem prestação de contas estimule investigação jornalística e mobilização cívica, alimentando movimentos de exigência por transparência. Em Angola vimos sinais de ambos: críticas nas redes, apelos de organizações civis e atenção internacional. Isso significa que o evento pode sair cara para quem o organizou.
O papel que Messi poderia ter desempenhado
Existem caminhos práticos que Messi poderia ter seguido para usar a sua presença de forma menos controversa:
Condicionar a sua participação à criação imediata de um fundo social ligado ao amistoso.
Tornar pública qualquer doação pessoal ou da sua fundação a projectos de nutrição e saúde.
Acompanhar a presença com visitas a projectos locais, dando visibilidade a ONGs e iniciativas que precisam de doações e parceiros.
Exigir transparência total dos contratos com a federação anfitriã.
Nenhuma destas alternativas inibiria o jogo em si, mas todas elas transformariam um acto que hoje parece puramente simbólico num momento de solidariedade pública.
Limitações da investigação e pedidos para aprofundar
Importa reconhecer limitações. Pesquisei fontes angolanas e médias internacionais relevantes. Encontrei fortes declarações de organizações da sociedade civil e de líderes religiosos. Também registámos que figuras públicas e economistas de maior perfil nacional, tais como José Pedro de Morais e Armando Manuel, não deixaram declarações públicas específicas sobre este caso nos canais que verifiquei até agora. Isso não prova que não tenham opinião; prova que, até ao momento, não há registo público verificável dessas opiniões. Uma investigação jornalística local poderia completar este quadro com entrevistas diretas.
Conclusão
A vinda de Messi a Luanda foi um acontecimento que gerou imagens globais instantâneas. Essas imagens, porém, não apagam a realidade do quotidiano para muitos angolanos. A escolha de aceitar um pagamento substancial para participar nesse jogo, sem que tenha havido contrapartidas sociais visíveis ou pedidos de transparência públicos, levanta questões de responsabilidade moral. As organizações civis que operam em Angola têm legitimidade para afirmar que o acto funciona como legitimação simbólica de um governo em falta de maior transparência e cuidado social. As alternativas para transformar o evento em algo socialmente positivo existiam e não foram adotadas.
No fim, o caso não é apenas sobre futebol. É sobre o que esperamos de figuras públicas com grande prestígio. É sobre se preferimos o brilho imediato ou a solidariedade duradoura. A escolha de Messi e dos organizadores ficará na memória pública. E para muitos angolanos a pergunta permanece: foi o brilho do espectáculo mais importante do que o pão para as famílias?
Fontes e referências consultadas
As fontes mais relevantes que consultei ao preparar este artigo são listadas abaixo. Coloquei notas diretas ao lado de cada item para ajudar-te a ver onde cada testemunho ou dado apareceu.
Carta aberta conjunta da sociedade civil angolana à Federação Argentina de Futebol e à seleção nacional. Friends of Angola. friendsofangola.org
Reportagem e mobilização de Florindo Chivucute, Friends of Angola, e participação em protestos internacionais. Club K e página da Friends of Angola. club-k.net+1
Entrevistas e citações de líderes religiosos, incluindo o padre Celestino Epalanga, e cobertura pela DW. facebook.com+1
Reportagens sobre estimativas de custo do amistoso, com valores destacados por vários meios. Veja relatos em Terra e em meios especializados. Terra+1
Fact checking e contexto sobre pronunciamentos ausentes de Messi e verificação de vídeos virais falsos. Polígrafo África. Poligrafo África
Exemplos de atletas que usaram sua visibilidade em campanhas sociais, como Marcus Rashford e Megan Rapinoe, com cobertura da imprensa internacional. The Guardian+1


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