Há momentos que deveriam ser maiores do que um evento. Deveriam ser encontros.
A chegada de Lionel Messi a Angola tinha esse potencial. A simples presença do argentino seria, em qualquer contexto, motivo de celebração coletiva, quase religiosa. Sob um céu quente de Luanda, milhões aguardavam um gesto que transcendesse o futebol.
Mas a realidade mostrou o oposto. A visita de um corpo sem presença, de um rosto sem expressão. Um ídolo que cumpriu protocolo, mas não criou ligação. Um homem que atravessou o país sem o ver e sem sentir o seu pulsar.
O "Messi Day" que tantos sonharam não existiu. Existiu apenas no imaginário de um povo habituado a amar sem ser visto, a aplaudir sem reciprocidade e a esperar sem ser correspondido.
Um país que vive o futebol com paixão
O futebol em Angola sempre foi mais do que um jogo. É expressão cultural, social e política. Desde os tempos coloniais, quando o futebol era uma das poucas formas de lazer permitidas, até hoje, os jovens nos musseques criam talentos com recursos limitados.
Clubes como Primeiro de Agosto, Petro de Luanda e Atlético do Namibe formaram gerações de jogadores que brilham localmente e internacionalmente, muitas vezes sem apoio institucional suficiente. Para muitos angolanos, ver Messi em Luanda poderia ser um momento de inspiração, uma oportunidade de conexão com o mundo do futebol global.
Mas a inspiração perdeu-se na superficialidade do espetáculo. Não houve treino aberto, não houve interação, e a preparação para o jogo foi mínima. A Seleção da Argentina chegou sem se instalar no país, sem se aproximar da cidade ou do povo, transformando o evento numa passagem apressada, com protocolos e fotografias, mas sem sentido real.
A coreografia da chegada. Um instante que não virou encontro
Messi apareceu. Tirou fotos. Acenou.
Tudo ocorreu dentro de um núcleo fechado, desenhado para evitar aproximações, espontaneidade ou qualquer toque humano. A presença do jogador foi tão breve e filtrada que, apesar das fotos e vídeos, quase ninguém sentiu que teve realmente um momento com ele.
O aeroporto transformou-se em palco de espetáculo controlado. Messi foi escoltado pelo seu jato privado avaliado em 45 milhões de euros e por uma equipa de segurança e assessores, atravessando um corredor invisível entre dois mundos: o mundo do privilégio absoluto e o mundo da esperança popular.
Não houve palavras dirigidas ao país.
Não houve gestos de reconhecimento.
Houve presença física, mas ausência simbólica.
O show preparado para poucos. E o país assistiu de fora
O amistoso Argentina Angola prometia ser grandioso. A imprensa internacional destacou que o jogo daria visibilidade a Angola para o mundo. Mas como falar em visibilidade, quando o país enfrenta problemas tão profundos? Crianças e famílias sobrevivem comendo no lixo, escolas funcionam com cadeiras de bloco, casas não têm energia elétrica nem água potável, e estradas permanecem sem asfalto.
Milhares de jovens angolanos, aqueles que driblam com bolas improvisadas nos musseques inspirados por Messi, ficaram de fora devido aos preços, ao acesso limitado e às barreiras sociais. Angola pagou caro e em silêncio, mas o retorno social foi mínimo.
As informações indicam que as barreiras do Estádio 11 de Novembro quase foram arrastadas pelo povo em tentativa desesperada de entrar. O episódio evidencia não somente a frustração popular, mas também a falta de preparação da organização. O pobre foi excluído do evento e não teve a oportunidade de apreciar o jogo, mostrando que o espetáculo beneficiou apenas uma minoria privilegiada.
E talvez seja preciso dizer: o angolano também é responsável por este vazio. Ao aplaudir Messi, mesmo sem alternativas, aceita a lógica do espetáculo global e reforça o privilégio de uma celebridade que não conhece o país que o recebe. O gesto de aclamar sem reciprocidade cria um ciclo em que riqueza e imagem se sobrepõem à presença e à humanidade.
O que se recebeu em troca foi efémero: um jogo que se dissolveu no ar, uma presença que passou como vento e um evento que deixou mais frustração do que orgulho.
Relatos do povo. Entre a esperança e a deceção
Vários jovens e fãs compartilharam o impacto do evento. Tomás, de 16 anos, que joga futebol nos bairros de Luanda com bolas improvisadas, disse:
“Vi Messi de longe, mas senti que não estávamos aqui. É triste porque pagamos o nosso esforço e coração e ele não viu a nossa vida.”
Maria, professora numa escola com cadeiras de bloco e sem energia elétrica, relatou:
“As crianças ficaram animadas com a notícia, mas muitas não puderam ir. O jogo deu visibilidade para o país, dizem, mas visibilidade sem melhorar vidas é apenas imagem.”
José, vendedor ambulante, completou:
“Messi esteve aqui, mas não conheceu Angola. Para nós, não houve presente. Só vimos luzes, fotos e segurança ao redor dele. Nós continuamos na nossa realidade.”
Esses relatos reforçam a perceção de que o espetáculo foi mais para o mundo ver Angola do que para Angola viver o momento.
O jato de 45 milhões. A metáfora do abismo
O Gulfstream GV de Messi tornou-se, involuntariamente, o símbolo máximo desta visita. Luxo absoluto atravessando continentes com leveza, em contraste brutal com a realidade angolana.
Debaixo do jato estendem-se bairros sem saneamento, musseques de poeira, jovens com talento e sonho, mas sem portas abertas. Comunidades que sobrevivem com o mínimo e que, ainda assim, receberam Messi com o máximo do seu coração.
Nunca o contraste entre o mundo das estrelas e o mundo dos anónimos foi tão visível e doloroso. O avião não é apenas transporte, é metáfora de desigualdade, isolamento e desconexão.
Angola como cenário. Uma narrativa global que insiste em não mudar
A visita de Messi revela um padrão antigo. África continua a ser usada como cenário para elites globais, não como protagonista. Angola paga, mas não dialoga. Aplaude, mas não é aplaudida. Recebe, mas não é reconhecida.
Este evento poderia ter sido simbólico. Messi a reconhecer o continente, a inspirar jovens, a honrar um povo. Mas foi apenas mais um capítulo do uso de celebridades em África, cheio de imagem e vazio de significado.
O mundo viu Messi em Angola. Messi não viu Angola.
A humanidade pedida e não concedida
O povo angolano não esperava doações ou discursos políticos. Esperava humanidade.
O mínimo:
um agradecimento,
uma frase de carinho,
um gesto simples,
uma aproximação real.
Nada disso veio. Messi já não é apenas Messi. É uma marca global, protegida por barreiras invisíveis, guiada por agendas corporativas, blindada pelo medo da exposição e pelas exigências do entretenimento.
Neste mundo, humanidade é luxo. E Angola, infelizmente, não recebeu nem isso.
A organização. Falta de visão ou de prioridade?
Não se pode atribuir toda a responsabilidade a Messi. Há também culpa dos organizadores.
Por que não houve planificação de um encontro cultural?
Por que não houve ações sociais ou visitas a academias locais?
Por que o povo foi deixado de fora?
Porque não era prioridade. O objetivo era somente ter Messi em campo. Fotografia. Notícia. Glamour. O impacto real, social, simbólico e humano, foi ignorado.
O jogo em si. Noventa minutos que não mudaram nada
O amistoso aconteceu. O estádio vibrou. O espetáculo cumpriu o roteiro.
Mas quando o árbitro apitou o final, a pergunta instalou-se no ar. O que mudou? Nada.
Não houve legado, continuidade ou transformação. O jogo terminou, e com ele terminou também a ilusão.
O grande contraste. Imagem versus realidade
Enquanto o mundo assistia a Messi em Angola, milhões continuavam a enfrentar a dureza diária. Crianças brincando entre o lixo, famílias improvisando refeições, escolas com cadeiras de bloco, bairros sem água ou eletricidade.
A visibilidade internacional oferecida pelo jogo é apenas superficial. Não reflete a Angola real, não transforma vidas nem cria oportunidades. O evento foi fotografia, notícia e glamour, mas deixou intacta a realidade invisível do país.
A grande pergunta. Era pedir muito?
Era pedir muito que Messi tivesse sido humano por um minuto?
Um minuto.
Um olhar.
Um gesto de reconhecimento.
Esse minuto teria valido milhões para o povo. Mas para Messi, aparentemente, valeria mais do que a sua agenda permitia.
E o povo angolano, ao aplaudir incondicionalmente, aceitou e reforçou esse distanciamento, tornando-se, em parte, cúmplice de um espetáculo que não o reconheceu.
Conclusão. Um corpo sem presença
Messi deixará Angola como chegou, isolado, protegido e distante dentro do seu jato luxuoso. A sua carreira seguirá brilhante.
Mas Angola ficará com a sensação amarga de ter recebido um corpo, não uma presença. Uma estrela, não um homem. Uma imagem, não um encontro.
Esta visita ficará marcada como oportunidade desperdiçada. A oportunidade de criar elo, impacto e memória.
No fim, ver não é estar. E Messi não esteve.
O mundo viu Messi em Angola. Messi não viu Angola.


O mundo viu Messi em Angola. Messi não viu Angola.
Por Paulo Muhongo
💬 E você, o que pensa?
Quantas vezes continuamos a aplaudir sem exigir presença, reconhecimento e humanidade daqueles que atravessam as nossas vidas em velocidade de espetáculo?
O mundo viu Messi em Angola. Messi não viu Angola.
Lionel Messi em Angola para o amistoso entre Argentina e Angola, mas sua visita revelou o contraste entre luxo e realidade social. Enquanto o mundo viu Messi, crianças e famílias continuam enfrentando pobreza extrema, escolas sem condições adequadas e bairros sem água e energia.
POLITICAECONOMIA
11/14/20256 min ler
