an abstract photo of a curved building with a blue sky in the background

O nosso primeiro piquenique

Escritor

Lisboa nasceu em tons de azul. O céu, pálido e branco como uma nave suspensa, repousava sobre o Tejo. Ao abrir a janela da cozinha, vi o visitante de sempre: o Pastor Alemão que, todas as manhãs, atravessa o terreno que limpei em maio. Não sei de quem é, mas já o considero parte da paisagem. Traz sempre nos dentes trapos e restos de rua, como se fossem troféus de um mundo só dele.

O vento agitava as árvores e a brisa entrava pela janela. Mastigava figos colhidos no dia anterior quando uma voz se insinuou dentro de mim. Não vinha do vento, mas da memória: era a dela. Clara, melodiosa, uma voz que não se escuta apenas, bebe-se. Estranha e próxima ao mesmo tempo, como se pertencesse a um lugar onde sempre quis morar.

Com essa lembrança a embalar-me, preparei-me. Tomei café com leite, escrevi-lhe um poema e um “bom dia”, depois desci até à estação de bicicletas. O caminho levou-me por Santa Apolónia e pelo terminal dos cruzeiros, onde dois gigantes de aço repousavam sobre o Tejo. Não sabia de onde vinham, nem para onde iam, mas pareciam guardar um segredo antigo, intocável.

No Terreiro do Paço, a multidão fervilhava. Turistas apressados cruzavam ruas e praças como quem tenta decifrar a cidade em poucos passos. Lisboa pulsava sob as rodas da bicicleta, entre elétricos, pregões e o ritmo dos dias que se anunciam longos. Foi nesse rumor que cheguei ao destino.

Às portas da uma, liguei-lhe. Convidei-a para um piquenique no Jardim Botto Machado, junto à Feira da Ladra. Aceitou sem hesitar. Encomendei duas pizzas de ananás, duas Coca-Colas, levei uma manta, a coluna de som e os figos — presente para o seu primeiro sabor.

Ela já estava na feira quando voltou a ligar. Percorria bancas, experimentava brincos. Através da videochamada, ajudei-a a escolher um par. Pouco depois, encontrámo-nos. Caminhámos até ao jardim, estendemos a manta, partilhámos as pizzas ainda mornas. Depois deitámo-nos lado a lado, e a música romântica que tocava da coluna deu ao instante uma leveza que parecia eterna.

O jardim estava cheio, mas não havia piqueniques além do nosso. Ao longe, um pai fazia rir a filha de meses, que escorregava pelo colo como um rio pequeno. Encostei a cabeça ao ombro dela e fiquei. O mundo cabia naquele gesto. O mundo era aquilo: a relva, o riso distante, o seu perfume a atravessar-me o peito. Nunca tinha sido tão fácil ser feliz.

Mais tarde, subimos até ao miradouro de Santa Luzia. A cidade brilhava diante de nós, mas os pés dela cederam antes do tempo. Voltámos devagar até ao Rossio.

Ali, deixámo-nos ficar entre palavras leves. O comboio partiu sem ela, e não nos importámos. Partilhámos ainda água e chocolate, como quem alonga o fim de uma tarde demasiado breve.

Quando finalmente embarcou, fiquei a olhar até o comboio se perder no horizonte. E compreendi que há dias que não partem connosco: ficam. Dias que não acabam, apenas mudam de lugar.

O nosso primeiro piquenique foi um desses dias — suspenso no tempo, guardado para sempre, como uma eternidade em silêncio.

Paulo Muhongo

O nosso primeiro piquenique

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