
O que reprovo às pessoas – Reflexões de um olhar inquieto
Num tempo de abundância material e escassez interior, este texto levanta uma questão incómoda: para onde foi a dignidade, o gosto, a beleza do simples? Uma crónica que observa o mundo contemporâneo com melancolia e lucidez, chamando-nos à responsabilidade de ser — e não apenas de ter.
REFLEXÕES
5/15/20252 min ler
Não sou moralista, nem me arrogo o direito de dar lições. Longe de mim essa pretensão. Mas por vezes, o que vejo à minha volta deixa-me desarmado — como se algo, com o tempo, se tivesse apagado do ser humano. Uma luz. Uma dignidade. Um certo brilho.
A China faz girar as suas fábricas a todo o vapor. Milhares de mãos dobradas sobre máquinas, a trabalhar para vestir o mundo. Todos os dias, abrem novas lojas. Roupa em abundância. Tecidos, marcas, logótipos. E no entanto…
Vestimo-nos como se já não tivéssemos alma.
Como se a roupa, outrora prolongamento da identidade, fosse hoje apenas um pano lançado sobre o esquecimento. Já não procuramos ser — limitamo-nos a cobrir.
O que reprovo às pessoas não é a pobreza, nem a riqueza.
É o vazio.
A falta de gosto.
A ausência de imaginação.
E, sobretudo, essa indiferença pela beleza. Pela limpeza. Pela delicadeza. Pela elegância do instante.
Vivemos na era do que chamo a geração dos sapatos sujos.
Basta entrar no metro e olhar para baixo.
Por vezes, a figura parece cuidada, quase elegante. Mas basta um olhar para os pés e tudo desmorona: ténis acinzentados, gastos pelo uso, manchados por mil passos esquecidos.
Lê-se ali o cansaço, a negligência, o desinteresse por si próprio.
Já não nos vestimos — cobrimo-nos.
De forma automática. Sem paixão.
Vivemos uma época estranha:
nunca houve tantos ricos,
e, no entanto, nunca a riqueza foi tão pobre.
Graças à internet, fortunas nascem de um dia para o outro.
Mas o espírito... esse, permanece vazio.
Bolsos a transbordar, e cabeças ocas.
Já não há cortesia. Nem compostura. Nem respeito pelo mundo ou pelo outro.
Apenas ruído. Atitudes arrogantes. Gestos sem sentido.
Fala-se alto. Exibe-se tudo. Agita-se sem propósito.
Mas o olhar já não vê. O ouvido já não ouve.
E o coração… o coração parece adormecido.
Estamos tão ocos que até o interior das nossas casas já não nasce da nossa alma.
Lembro-me de uma obra, quando ainda trabalhava na construção.
Um cliente contratou-nos para mobilar uma casa — uma moradia enorme, quase um palácio, com vista para o Tejo.
Tudo era branco. Absolutamente tudo. E assim permaneceu, mesmo depois da nossa intervenção.
O cliente tinha contratado uma decoradora de interiores.
Não sabia desenhar, nem usar Autocad ou qualquer outro software da área.
Mas havia que reconhecer-lhe algo: imaginação.
E a imaginação, mesmo sem técnica, ainda pode tudo.
Os móveis, os electrodomésticos, vinham de Espanha.
Os mais caros do mercado.
As janelas antigas, de madeira envelhecida e molduras em pedra, foram arrancadas.
Substituídas por caixilharia de alumínio — claro, branca.
Sempre o branco.
Como se quisessem pintar por cima do vazio.
Como se o branco, obsessivo, fosse capaz de oferecer a paz interior que o dinheiro, ou os bens, jamais trarão.
Após meses de trabalho, terminámos a obra.
A casa não estava mais bonita. Nem mais acolhedora.
Estava apenas mais cara.
É este o estado em que estamos.
Miseráveis modernos.
Ricos em coisas. Pobres em alma.
E às vezes, ao ver documentários de outras épocas, sinto uma nostalgia estranha.
Aquelas pessoas não tinham muito.
Mas eram dignas.
Dignas — é essa a palavra que procuro.
Vestiam-se com orgulho, mesmo quando as roupas estavam gastas.
Havia postura.
Uma luz no olhar.
Hoje, tudo vacila.
Até a televisão — que antes era vitrine de elegância — já nada tem para inspirar.
Já não há modelos. Nem sobriedade.
Só vazio. Ruído. Brilho falso.
E eu, no meio deste alvoroço, dou por mim a sonhar com um mundo mais simples.
Não um mundo perfeito, não.
Mas um mundo onde ainda se lutasse por ser.
Ser belo, digno, e vivo.