an abstract photo of a curved building with a blue sky in the background

Parte I - Regresso ao País Desconhecido

Uma viagem interior onde o passado sussurra ao presente. Este relato revela o desassossego de um regresso ao país natal, tornado silhueta longínqua. Entre afetos reencontrados, ruas redescobertas e promessas de infância, é a história de um coração que volta a habitar uma terra que nunca deixou verdadeiramente — mas que, agora, aprende enfim a olhar.

PROSACONTOS

5/25/20253 min ler

Sempre me intrigou a escolha de Dany Laferrière — esse título enigmático: O Enigma do Regresso.
Carregava em si um peso invisível, uma profundidade silenciosa, como um murmúrio antigo que apenas os iniciados sabem decifrar.
Mas eu não compreendia. Ainda não.
Perguntava-me:
Porquê “enigma”? Porquê “regresso”? Não será simples voltar a casa?

Só compreendi quando atravessei o limiar do regresso.
Naquele dia, uma chamada vinda de África arrancou-me à rotina lisboeta. Uma urgência familiar.
Era preciso voltar.
E de repente, a palavra voltar pareceu-me estranha, espinhosa, desconfortável.

O meu próprio país causava-me medo.
Esse lugar de poeira vermelha e calor abrasador, onde dei os primeiros passos, tornara-se território desconhecido.
Carregava-o dentro de mim, sim, mas como se carrega uma cicatriz antiga, já esquecida.
Parecia-me longínquo, desfocado, quase mítico.

Na véspera da partida, estive prestes a desistir.
Não consegui dormir.
A mente vagueava, inquieta, alimentada pelas mil histórias ouvidas nas ruas de Lisboa, nos salões de imigrantes:
«Lá nada mudou...»
«Lá tudo piorou...»
«Lá, quem volta, perde-se.»

Dois amigos trouxeram-me de volta ao essencial.

O primeiro disse-me, com a voz embargada pela emoção:

«Vais rever a tua mãe. Ela espera-te sem esperança. Espera-te sem palavras. Espera-te há dez anos.»
«Vais carregar novamente a tua irmã às costas, como fazias quando ela tinha cinco anos. Talvez ela já não se lembre do teu cheiro, mas o corpo lembrar-se-á.»

O segundo, com uma serenidade desconcertante, sussurrou:

«Lisboa não se apagará. Esperar-te-á. Mas a tua família, essa não espera para sempre. E um dia, poderá ser tarde demais.»

Levantei-me ao amanhecer, com o coração pesado e iluminado ao mesmo tempo.
Apanhei um voo para o Sul — rumo à infância, à origem, àquilo que fui.

Ninguém sabia.
Queria o impacto da surpresa, a doçura do inesperado.
Falei com a minha mãe em videochamada no aeroporto.
Ela via-me, mas não sabia.
Disse-lhe que ia de férias. Pensou que regressava a França.
Desejou-me boa viagem, sem imaginar que os meus passos me traziam de volta a ela.
Que em poucas horas, os seus braços refariam o caminho até ao meu corpo de menino.

O meu país era-me estranho, sim.
Mas talvez nunca o tivesse verdadeiramente conhecido.
Conhecia o musseque, as ruas de terra batida, os risos, a luta diária.
Mas Luanda? Luanda era uma silhueta longínqua. Nunca a habitei.

Nunca contemplei o Atlântico a partir da Marginal.
Nunca bebi café no Kinaxixi.
Nunca me sentei para olhar o céu e escutar a cidade.

Lá em casa, não nos faltava comida — faltavam sonhos.
A minha mãe trabalhava sem descanso. O meu pai também.
Tínhamos o essencial. Mas o horizonte era opaco.
Nenhuma promessa brilhava ao longe.

Recordo-me de uma noite em que me perguntei:

«É isto a vida? Um quotidiano sem luz? Uma espera sem futuro?»
«Será que a minha mãe carregará para sempre bacias na cabeça?»
«Algum dia correrá água da torneira?»
«Teremos uma noite inteira com luz?»
«Quantos quilómetros mais até encher os bidões?»

Era um miúdo de barriga cheia e alma inquieta.
As pernas corriam. O espírito, esse, estagnava.

Hoje volto com outro olhar.
Volto para amar esta cidade que nunca abracei.
Quero sentar-me no Kinaxixi e escrever um poema, ao ritmo do vento.

Não quero mais fugir.
Quero caminhar por Luanda e conhecê-la de verdade.
Antes, ia ao centro apenas para tratar de papéis e documentos.
A única vez que vi a baixa foi com o pai do meu padrasto.
Conduzia a família no seu Range Rover velho, apressado, calado.
Lembro-me de sentir apenas tensão e confusão.

Desta vez, quero senti-la, escutá-la, saboreá-la.
Pensei que encontraria restaurantes elegantes, como os de Lisboa.
Mas um amigo disse-me:

«Em Luanda, a melhor mesa é a da tua mãe. O resto? Ilusão e moscas no prato.»

Por isso, comerei em casa. No aconchego de quem sempre me esperou.
Mas ainda sonho: talvez um dia encontre um lugar onde possa partilhar um bom prato com os meus, em paz.

Prometo à minha irmã uma biblioteca.
Prometo-lhe um cinema.
Prometo-lhe passeios de bicicleta.
E pela primeira vez, irei ao Músculo — esse lugar lendário que tantos estrangeiros conhecem… mas que eu nunca pisei.

Sim. Aos trinta anos, volto.
E descubro, com espanto, que este país que julgava meu…
nunca cheguei verdadeiramente a habitá-lo.

Quais são as tuas impressões ?