
Parte II - Regresso ao País Desconhecido
Há lugares que ficam connosco, apesar do tempo e da distância. Neste texto, regresso ao musseque da minha infância, onde cada abraço, cada sorriso, cada lágrima contava o amor puro de um regresso tão esperado.
PROSACONTOS
5/28/20257 min ler
O voo de Lisboa para Luanda correu com surpreendente suavidade — algumas perturbações, é certo, mas nada que o comandante não soubesse domar com a serenidade dos céus. Não viajei em primeira classe, nem em Premium, mas a hospitalidade da equipa de bordo revestiu-se de uma cortesia calorosa e atenta, que quase fez esquecer a modéstia do lugar. O único desconforto surgiu antes do embarque: um odor amargo, vindo das entranhas do aeroporto, fruto de um esgoto rebelde. Felizmente, levava comigo uma máscara — símbolo dos tempos que vivemos e escudo improvisado para o inesperado.
Após o embarque, o avião descolou, cortando a noite lisboeta como uma seta silenciosa. Eram 23h35. Do alto, as cidades tornavam-se miniaturas de luz — geometrias brilhantes desenhadas por lâmpadas e candeeiros, sinais de que lá em baixo, invisíveis, há vidas a pulsar, histórias a acontecer, amores e perdas em curso. Mas logo a altitude aumentou, e com ela veio o véu espesso das nuvens, que se fechou diante dos olhos, como se o céu dissesse: “Daqui para a frente, só o sentir importa.”
Por volta da 1h30, serviram-nos a ceia. O menu, embora simples, vinha com um certo requinte honesto: massa com molho de tomate, pãozinho morno e ervilhas delicadamente dispostas. Bebi vinho tinto, generosamente servido — tanto que, sem vergonha, pedi nova taça. A meu lado, um homem nos seus 57 anos, companheiro de voo e de copo, escolheu o mesmo prato. Conversámos entre goles e silêncios, entre memórias e ausências. Ele vivia entre Portugal e Angola, entre a linha de Sintra e a memória da terra quente. Trabalhava na Sonangol, abastecendo aviões, e conhecia aquelas aeronaves como quem conhece os atalhos da própria infância.
A certa altura, a conversa esmoreceu. Talvez pelo peso do vinho, talvez pelo cansaço que nos dobrava as pálpebras. Adormecemos, sem saber quem cedeu primeiro ao silêncio.
Quando despertei, o relógio marcava quase 6h. O avião preparava-se para descer, devagar, como quem não quer acordar um corpo adormecido. Estávamos a poucos minutos de Luanda. Aterrámos com doçura — mas soube, naquele instante, que os verdadeiros desafios ainda estavam por vir. Porque é no chão, e não no céu, que se sente o peso de um país.
O despacho das bagagens foi um exercício de paciência. Quase duas horas. E, como se não bastasse, uma nova inspecção aguardava-me. Levava comigo quatro garrafas de vinho do Porto — 19% de álcool — e os agentes, com a autoridade de quem não precisa de explicar, disseram que não era permitido. Pedi o artigo, a prova da proibição. Nenhuma resposta. Apenas o tempo, esse velho cúmplice da burocracia, a escorrer lento, penoso. Esperámos mais uma hora e meia. Deram-me uma folha de papel e pediram que escrevesse o meu nome. Obedeci. Mas ninguém lia aquela lista. Ninguém chamava os nomes. Ninguém nos guiava.
As pessoas passavam, com as suas malas, com os seus reencontros à porta. E eu, tal como outros, ali ficava — à deriva num lugar que era suposto ser meu.
Foi então que, entre o cansaço e a lucidez, compreendi: estava em Angola. Este país que me viu nascer, mas onde nunca me foi permitido pertencer por inteiro. Uma terra que é nossa, dizem. Mas que, no fundo, nunca senti como minha. Nasci nas suas entranhas — mas nunca me deram raízes.
Finalmente depois de gritos por muitos de nós, alguém decidiu pegar a lista e chamá-la por ordem. Era 9h quando finalmente saí daquele inferno. O meu amigo, que se tinha prontificado a levar-me até casa da minha velha, já me esperava há mais de duas horas. Desejou-me boas-vindas e conduziu-me a uma casa de cambio, onde trocamos alguns valores para a minha estadia. Mas ao sair do aeroporto, pensei que encontraria uma estrada diferente ou talvez mais limpa, menos esburacada, infelizmente as coisas de melhorarem em 10 anos, houve um retrocesso.
Paramos no Kero para matar a fome. Nada fora do comum: uma pizza para dois, mais uns refrigerantes. No fim, a conta — 10 mil kwanzas. Olhei para o talão e pensei: “o Kwanza, que muitos chamavam de burro, ficou esperto”.
Esperto por quê? Porque, segundo o câmbio oficial, 100 euros valem uns 123 mil kwanzas. Ou seja, essa refeição custou o equivalente a uns 8 euros. Em termos europeus, parece até uma pechincha.
Mas é aí que mora o truque.
O salário mínimo em Angola é de 32 mil kwanzas. Isso quer dizer que um trabalhador com salário mínimo gasta quase um terço do seu rendimento mensal numa única refeição simples. Um almoço casual transformado num luxo inacessível.
E aí eu pergunto: quem é que ficou burro afinal?
É fácil falar em valorização da moeda, em recuperação económica e estabilidade cambial — tudo muito bonito nos relatórios. Mas na vida real, o angolano continua a viver num malabarismo constante entre a sobrevivência e a dignidade.
Porque enquanto os preços sobem e os salários ficam parados no tempo, o Kwanza pode até fingir que é forte… mas quem está a pagar a conta somos nós.
Ao sair do aeroporto, fui recebido pela realidade nua e crua que tantos angolanos enfrentam diariamente.
Antes mesmo de o calor me tocar com força, vieram eles — quatro meninos, de pés descalços e olhos urgentes, precipitaram-se em nossa direção.
Não pediam moedas.
Pediam restos.
Queriam apenas o que sobrava da pizza que ainda segurava na mão.
Não hesitámos.
Nem por um segundo.
Foi um gesto automático, quase instintivo — como se o corpo soubesse, antes da razão, que a fome de uma criança não se discute.
Estendemos o que tínhamos, e eles agarraram com a pressa de quem não pode esperar.
Ali, no primeiro contacto com a terra, não foi a pátria que me recebeu —
foram os rostos magros da infância esquecida.
E com eles, a certeza: o regresso ao país desconhecido começava ali.
No olhar faminto de um menino que só queria comer.
Seguimos o percurso pelas estradas esburacadas, como quem percorre não só o território, mas também as frestas da memória.
O destino: o meu musseque — esse chão vermelho onde as minhas primeiras pegadas repousam há anos.
Chegámos até à zona da Avó Kumbi, e foi então que os ecos do passado começaram a despertar.
Reconheci a confusão habitual, os gritos entrecortados de quem tenta vender algo — não por negócio, mas por sobrevivência.
O mesmo cheiro denso, quente, de corpos em movimento, de vidas a correr de um lado para o outro na labuta diária.
A poeira misturada ao suor, a pressa misturada ao cansaço.
Mas a memória, essa traidora silenciosa, também falhou.
Não reconhecia os novos becos, nem as valas abertas pelo abandono, nem os montes de lixo que agora pontuavam o caminho.
O bairro tinha crescido — ou desordenado-se — para além do que o meu coração lembrava.
Foi graças ao boca-a-boca, às indicações dadas com os olhos e os braços,
e aos marcos eternizados na fala do povo — o Bar da Mãe Gorda, a Polícia da Mãe Gorda —
que enfim reencontrei a rua onde vive a minha mãe.
A rua onde cresci.
Mas que agora, diante dos meus olhos, me parecia um território completamente desconhecido.
O regresso não era só físico.
Era também íntimo, feito de rupturas e reencontros.
Como se a terra me dissesse:
“Podes voltar, sim. Mas serás sempre estrangeiro até reaprenderes a sentir-me.”
E era verdade.
Na escola da vida do musseque, eu teria de reaprender tudo aquilo que o tempo e a distância me fizeram desaprender —
a linguagem dos gestos simples, os silêncios que falam, a resistência moldada no rosto das mulheres e no riso das crianças.
Mas, ali mesmo, no meio do desconcerto, um grão de esperança acendeu-se dentro de mim: o bairro, agora, tinha eletricidade.
E água — água limpa — a correr pelas torneiras.
Como se, apesar de tudo, a vida estivesse a encontrar maneiras de florescer.
Paramos diante da casa.
O meu amigo bateu à porta com firmeza e respeito.
Segundos depois, ela abriu-se — e ali estava ela: a minha mãe.
Os nossos olhos cruzaram-se num instante que pareceu eternidade.
O tempo parou.
Ela não disse nada. O rosto dela oscilava entre o espanto e a incredulidade, como se a mente recusasse aceitar o que os olhos viam.
Talvez pensasse estar a viver uma alucinação, um sonho que a vida se esquecera de lhe dar.
Sem procurar distinguir entre realidade e imaginação, ela correu para mim — e num gesto que só o amor é capaz de produzir, abraçou-me com uma força antiga, com a alma inteira.
Ergueu-me do chão como se eu ainda fosse o seu menino,
como se o tempo não tivesse passado,
como se o regresso fosse uma reescrita do destino.
E naquele abraço, entendi: às vezes, o regresso não é uma chegada —é um recomeço.
Em poucas horas, a casa encheu-se.
Os familiares chegavam de todos os cantos do musseque, como se o vento tivesse espalhado a notícia do meu regresso e cada um viesse guiado pelo coração.
Vieram os abraços apertados, os choros descontrolados, os gritos de espanto e alegria.
Era como se cada corpo que me tocava dissesse:
“Estás vivo. Voltaste. És de novo nosso.”
Não me importava se vinham limpos ou cobertos de poeira, se tinham cheiro a rua, a suor ou a carvão.
Eu abraçava cada um com a alma escancarada, sem pensar na camisa que sujava, na calça amarrotada, porque nada — absolutamente nada — valia mais do que aquele calor humano, aquele afeto sem filtros nem máscaras, tão puro que queimava por dentro.
Naquele instante, os meus braços eram extensão dos meus sentimentos.
E ali, entre sorrisos partidos e lágrimas inteiras, reconheci a beleza crua e luminosa do reencontro.
As minhas irmãs, os meus irmãos, os tios e as tias, os primos e as primas, os amigos de infância —
até rostos que a memória já não alcançava — todos vinham.
Porque o amor no musseque não precisa de convite.
Basta sentir que alguém voltou para que os corações se acendam, e os passos se dirijam, quase por instinto, ao lugar onde o calor humano se renova.
Foi então que uma festa improvisada começou.
Grades de gasosas e garrafas de cerveja começaram a entrar pelo quintal, como oferendas de alegria.
A música ergueu-se no ar, sem precisar de cerimónia.
O merengue ecoava das colunas com alma, e eu, ao lado do meu tio, entrei no centro da roda para darmos os passos marcados de quem carrega ritmo no sangue.
Os pés batiam o chão como se quisessem acordar os mortos.
As mãos dançavam no ar como quem abençoa a vida.
Durante quatro dias, o tempo parou — ou talvez tenha dançado connosco.
Os rostos surgiam como flores num jardim que não se cansa de florir.
Cantávamos.
Dançávamos.
Bebíamos e ríamos.
Chorávamos também — mas era um choro bom, um choro de quem percebe que mesmo longe, nunca deixou de pertencer.
Depois vinham os adeuses.
Eram muitos, e cada um doía um pouco mais.
Porque no fundo, sabíamos: talvez aquela fosse a última vez.
Talvez aquele abraço tivesse de durar anos, ou uma vida inteira.
Mas ninguém ousava dizê-lo em voz alta.
Apenas olhávamos fundo nos olhos uns dos outros, como quem grava ali, no silêncio, um pedaço da eternidade.