
Parte III - Regresso ao País Desconhecido
Entre a poeira do musseque e a brisa da baía, narra-se aqui um instante suspenso no tempo — onde o amor, a ausência, a fome e a beleza se entrelaçam no mesmo olhar.
PROSACONTOS
5/30/20253 min ler
Depois de ser envolvido pelo calor do amor e do afeto de familiares e amigos, chegou o momento de um reencontro longamente aguardado: rever a minha irmã mais nova, a mesma que deixei com apenas cinco anos de idade. Reconheceu-me de imediato, não pelo rosto, mas pelo olhar. Agora, aos dezasseis, ergue-se quase mulher: alta, clara, bela, meiga e de uma inteligência luminosa. Não parece filha da poeira, menina do musseque.
Os dias fluíam entre abraços demorados e palavras doces. Mas precisávamos de um instante só nosso, onde pudéssemos partilhar tudo o que, durante anos, nos dissemos por ecrãs frios. Para isso, escapámos do doce bulício familiar, onde se entrava e saía como quem não queria partir, mas partia porque a vida corre, e o amor, por mais sincero, não enche o estômago. Eu, vindo da terra dos mundeles, não trazia o suficiente para saciar a fome de todos os abraços.
Despedimo-nos da mãe com a promessa de um breve regresso e partimos. Fomos ao Kero, no Nova Vida. Partilhámos duas sandes de pão-de-deus, taças de café com leite, uma torta de laranja e um Compal. Através do vidro, vi a filha da irmã gémea da minha mãe — minha segunda mãe. Quando pequeno, confundia-as; mas ambas sempre me ofereceram o mesmo colo, o mesmo amor. Convidei-a, e com a amiga que a acompanhava, sentaram-se connosco, aceitando apenas algo modesto, num gesto de delicadeza que me comoveu.
Seguimos então em direção ao Rocha Padeira e depois à Mutamba. Ponderei chamar um Yango, mas decidi sentir, mais uma vez, o pulso do meu povo. Atravessar a cidade em transporte colectivo é quase um acto de coragem: não há passadeiras, apenas travessias improváveis entre carros, como quem se desvia de balas invisíveis. Subimos a um Peugeot, de dez lugares, onde o suor da gente se misturava com poeira e fumo de lixo. Ainda assim, senti um orgulho silencioso quando percebi que alguns se sentiam gratos por partilharem banco com o meu perfume estrangeiro. Somos todos filhos da mesma terra, da mesma luta, da mesma esperança.
Chegámos à Mutamba após mais de duas horas de viagem. A cidade, cansada, vestia-se de lixo e de poeira. A miséria aumentara. Crianças e adultos, antes invisíveis, agora mendigavam à luz do dia, escavando restos em contentores. Caminhámos pela baía sob um sol impiedoso e, rendidos, sentámo-nos numa esplanada com vista para o oceano. Pedi um fino, bem gelado, enquanto conversávamos para recuperar o tempo roubado. Ríamos, lembrávamos, voltávamos à infância.
Ali estavam os senhores do país, os que navegam sempre com a maré. Comiam os peixes mais frescos, trajavam o melhor das grifes, mas nós, do musseque, não nos sentíamos menores. Porque o refinamento não se veste: sente-se. A minha alma, embora feita de barro, também reconhece a beleza e o conforto.
Pedi um chouriço grelhado como entrada. O prato principal: carapau grelhado com batata-doce, feijão e salada. A minha princesa escolheu um bitoque e um sumo, não por preferência, mas por falta de opções. Quando os pratos chegaram, foram como um mimo celestial. Mas logo a música triste do país recomeçou: crianças esfarrapadas pedindo migalhas. Levantei-me, entreguei-lhes o que restava dos meus trocos.
Ao regressar ao meu lugar, perguntei-me como podem os que governam ignorar tudo isto. Como se pode viver rodeado de abundância, cruzar-se com a miséria todos os dias e seguir indiferente? Em Angola, o tempo parece parar ou, pior ainda, andar para trás.
Pedimos as sobras para levar. Mal saímos, dois miúdos, como sentinelas da fome, pediram os restos. Entregámo-los, com lágrimas no olhar. Aquela refeição, por mais breve que tenha sido, custara quase o dobro do salário mínimo.
Para digerir não apenas a comida, mas também as emoções, caminhámos mais um pouco pela baía. O sol, em despedida, pintava o céu de dourado. Parámos. Respirámos fundo. Contemplámos aquele beijo último entre o astro e o Atlântico.
De mãos dadas, regressámos ao nosso Ngoló, ao musseque, à terra que nos moldou. De volta ao povo que, mesmo com fome e sede, guarda nos lábios um sorriso que resiste. O cobrador, agora gerente de banco improvisado, grita com voz de comando o destino do velho táxi azul e branco. Subimos. O tumulto era o mesmo. O cheiro, familiar. A vida continuava.