Em 2 de dezembro de 2025, a Procuradoria-Geral da República de Angola (PGR) anunciou que o ex-governador e antigo ministro do MPLA, Higino Carneiro, foi constituído arguido em dois processos-crime, n.º 46/19 e 48/20.
No processo 46/19, é acusado de peculato, pelo alegado uso indevido de fundos públicos durante o seu mandato como governador da província do Cuando Cubango. No processo 48/20, é acusado de burla qualificada, por supostamente ter recebido mais de 60 viaturas de uma empresa privada durante a governação em Luanda e distribuí-las a particulares sem pagamento.
À primeira vista, estes factos poderiam sugerir um passo sério no combate à corrupção em Angola. Porém, o momento em que surgem as acusações, o passado do arguido e a história política do país levantam dúvidas sobre se esta é uma aplicação imparcial da justiça ou uma manobra de natureza política.
Histórico necessário: poder, corrupção e impunidade
Para compreender por que muitos interpretam o caso como uma limpeza interna, é necessário recuar e analisar o padrão histórico. Angola vive há décadas sob o domínio do MPLA, com múltiplos relatos e investigações de desvio de recursos públicos, nepotismo, favorecimentos e corrupção sistémica.
Durante o mandato de José Eduardo dos Santos, Angola adquiriu reputação internacional como um dos países mais corruptos do mundo, com vastas redes de clientelismo, desvio massivo de receitas, especialmente das indústrias extractivas, e favorecimento de elites próximas do poder. Empresas multinacionais também estiveram envolvidas; por exemplo, o conglomerado Odebrecht admitiu o pagamento de subornos para obter contratos públicos entre 2006 e 2013.
A estrutura de poder misturava Estado, partido, interesses privados e interesses pessoais de indivíduos ligados ao regime, dificultando verificações, transparência e responsabilização real. Muitos casos de corrupção e má gestão raramente resultavam em condenações, tornando a impunidade regra e não exceção.
Desde que João Lourenço assumiu a presidência em 2017, o governo angolano prometeu uma nova fase de transparência e combate à corrupção. Foram abertas investigações, lançados processos contra figuras de destaque e realizadas ações simbólicas. Nesta nova fase, a sociedade e a comunidade internacional observaram com alguma expectativa, embora o desafio continue a ser garantir que o combate não seja apenas seletivo, mas abrangente e eficaz.
O caso de Higino Carneiro: fatos e cronologia
Higino Carneiro ocupou cargos de grande relevo, tendo sido governador de várias províncias, incluindo Luanda e Cuando Cubango, e exercido funções ministeriais. Em 2019, foi constituído arguido num processo que alegava má gestão durante o seu mandato como governador de Luanda. Em 2022, o processo foi arquivado pelo Tribunal Supremo de Angola, que emitiu despacho de despronúncia e arquivamento, ilibando-o das acusações até então.
A 2 de dezembro de 2025, a PGR voltou a acusá-lo, desta vez por peculato e burla qualificada, relativos a períodos diferentes, Cuando Cubango e Luanda. Fontes oficiais confirmaram que ele foi constituído arguido em dois processos distintos. Higino Carneiro reagiu publicamente, através das suas redes sociais, afirmando confiança no sistema judicial.
O timing e a política interna do MPLA
A política angolana é marcada por tensões internas, fações, lealdades e interesses de poder. Neste contexto, a entrada de Carneiro na corrida interna pela liderança do MPLA no congresso de 2026, anunciada em julho de 2025, assume especial significado. Poucos meses depois surgiu a acusação formal.
A proximidade temporal não passou despercebida a analistas e observadores, que veem no caso um exemplo de limpeza interna ou de utilização da justiça como instrumento de controlo político. O caso de Higino Carneiro pode estar alinhado a um padrão: quando figuras com ambição ou potencial de rivalidade interna emergem, tornam-se vulneráveis a acusações, verdadeiras ou não, que podem neutralizá-las politicamente.
Casos comparativos dentro do MPLA
Para compreender a seletividade e impunidade, é útil recordar outros episódios recentes envolvendo membros do MPLA ou pessoas próximas ao poder. A família da ex-presidente da Sonangol, Isabel dos Santos, foi alvo de investigações por alegado desvio de fundos, uso de off-shore e benefícios ilegítimos, com contas congeladas e investigações internacionais. Empresas estrangeiras, como a Odebrecht, admitiram subornos para obter contratos públicos em Angola.
A cultura de subornos, propinas, patronagens e nepotismo foi identificada como prática corrente em setores como petróleo, obras públicas e contratos estatais, segundo relatórios de organizações internacionais e ONGs de transparência. Estes exemplos demonstram que, se o sistema fosse sério, haveria um combate amplo e consistente, não apenas acusações isoladas contra indivíduos incómodos.
Estado atual da luta contra a corrupção
Nos últimos anos, houve esforços do Estado e da PGR para investigar casos de corrupção, mesmo envolvendo figuras de alto escalão, gerando alguma esperança após a queda de reputação internacional do país. Contudo, persistem problemas estruturais.
Existe a perceção de que muitos processos resultam em arquivamentos, impunidade ou decisões sem transparência, o que mina a confiança da sociedade. O medo de represálias ou retaliações quando cidadãos denunciam irregularidades afasta a participação da população. A falta de mecanismos independentes de auditoria e fiscalização, e a sobreposição entre Estado, partido e elites políticas, dificulta separar interesse público do privado. Mesmo com investigações em curso, há razões para duvidar que o combate alcance todos os níveis de poder.
Análises críticas e vozes de alerta
Analistas políticos, vozes da sociedade civil e meios independentes consideram que o caso de Higino Carneiro é sintomático de justiça seletiva e de uso político da máquina judicial. Alguns afirmam que o processo serve para enviar um sinal a outros potenciais rebeldes dentro do MPLA, desencorajando dissidências.
A retórica de combate à corrupção funciona como fachada. O principal objetivo parece ser preservar a hegemonia de elites e manter o controlo interno. Sem transparência plena, sem julgamento aberto e sem responsabilização extensa, o sistema continuará a funcionar com impunidade. Por outro lado, se existirem provas efetivas, o Estado tem o dever de agir, exigindo independência do judiciário, segurança para denunciantes e cultura de responsabilidade pública. Estas vozes alertam para o risco de transformar o combate à corrupção num instrumento de poder e controlo, em vez de promover verdadeira reforma institucional.
Minha leitura: entre ceticismo, esperança e vigilância
O caso de Higino Carneiro é emblemático de um dilema. Por um lado, existem indícios de que a justiça possa estar a ser aplicada; por outro, há sinais fortes de seletividade e instrumentalização política. O desafio é separar o que é legítimo do que resulta de interesses particulares ou de grupo.
Se Angola pretende avançar rumo à governança séria, ao Estado de Direito e à justiça para todos, será necessário ir além de acusações pontuais. Isso implica transparência total dos processos judiciais e auditorias de contratos públicos, igualdade de tratamento para todos os envolvidos, proteção a denunciantes e investigação independente com participação da sociedade civil, meios de comunicação e ONGs, além de mudanças institucionais que reduzam o papel do partido-Estado e promovam responsabilidade real.
Enquanto estas medidas não forem implementadas, a justiça continuará a servir apenas a poucos, e casos como o de Carneiro devem ser lidos com olhar crítico, vigilante e cético.
Angola e a democracia
O processo contra Higino Carneiro é mais do que um incidente isolado. Reflete décadas de impunidade, desigualdades institucionais e falhas estruturais no Estado angolano. Confirma que a luta contra a corrupção depende não só de vontade política, mas de mudanças profundas.
Se for conduzido com isenção, transparência e justiça universal, poderá marcar o início de uma nova fase. Se servir apenas para eliminar rivais ou consolidar poder, tornará-se mais um símbolo de injustiça seletiva e impunidade. Angola e os angolanos merecem uma justiça verdadeira, para todos, não apenas para quem desafia o poder, mas também para quem o detém.


Quem desafia a raiz sente o peso do tronco: O Caso Higino Carneiro e o MPLA
Por Paulo Muhongo
💬 E você, o que pensa?
Estamos a assistir a um ato de justiça verdadeira ou apenas ao peso do tronco a castigar os ramos que ousam crescer?
Quem desafia a raiz sente o peso do tronco: O Caso Higino Carneiro e o MPLA
Análise crítica do caso Higino Carneiro: acusações de peculato e burla qualificada levantam questões sobre justiça seletiva e política interna do MPLA em Angola.
POLITICA
12/4/20256 min ler
