
São 7h10. Os meus pés apressam-se em pisar cada pedra das ruas que compõem o necessário de Lisboa. Ao abrir a porta que dá para fora, um muro velho e desgastado acolhe o meu olhar, e as reflexões fluem como as águas que jorram de uma fonte. Pergunto-me:
– Quem viverá ali?
– O que foram essas ruínas?
– Será que a família que lá viveu foi feliz? Teriam eles crianças?
Os pensamentos surgem no mesmo compasso em que os meus pés tocam as pedras das calçadas, no mesmo ritmo cardíaco do meu coração, enquanto o corpo tenta lutar contra o frio matinal.
Quando dei por mim, já tinham passado dez minutos. Estava em frente ao cemitério do Alto de São João. Aí, enormes estruturas artísticas erguem-se guardando os restos mortais de quem foi gente — gente a quem o mundo admirou pelo que fez ou deixou de fazer — mas que hoje se resume ao silêncio, num mundo sem voz, em cinzas, em poeira que o vento leva com leveza, apesar do peso dos nomes que permanecem na memória dos viventes.
Mas, ao mesmo tempo, vejo outro cenário: uma avó e a sua neta no parque. A menina está sentada no baloiço, enquanto a avozinha a empurra com toda a força que tem. Juntas unem-se numa só voz, melodiosa, para contar quantos empurrões já foram dados pela avó.
Nesse breve encontro entre a morte e o nascimento, entre o sorriso e a tristeza dos enlutados que se precipitam em ir ao cemitério para dizer bom dia aos seus entes queridos, penso na efemeridade da existência. Sou apenas um eco no universo; nada do que tenho me faz superior ou melhor que qualquer outro ser à minha semelhança. Sou fumaça que o vento, um dia, levará para horizontes desconhecidos.
Tiro a bicicleta da “gaiola” e, antes da primeira pedalada, coloco a música Protégeons nos Leaders de OutFils 1er. Ela leva-me a milhas das terras que agora piso, até ao berço da humanidade, a Mãe África. A brisa gelada bofeteia-me o rosto, mas não paro — pelo contrário, pedalo com mais rapidez. Estou a 24 km/h, numa descida, e vejo no horizonte o sol a sobrepor-se ao plano prateado do Tejo, pintando o céu com tons amarelos e avermelhados — um espetáculo matinal oferecido pela graça divina.
Ao virar a esquina, travo para saudar o senhor José, o meu fornecedor de vinho. Vejo-o a montar as coisas no exterior. Apesar da idade já avançada, continua a trabalhar — não por necessidade, mas porque foi a única forma que encontrou para dar algum sentido à vida depois da reforma. No seu pequeno comércio trabalham ele e a irmã, sempre bem-dispostos. Quando lá vou, deixo a escolha dos vinhos por sua conta — e desde então, sempre me deu dos melhores.
Quando projeto a minha voz na sua direção para lhe dizer “Bom dia”, os seus olhos já estão voltados para mim, como se esperasse por esse momento, pois passo sempre a esta hora. Somos seres de hábitos e costumes. O senhor José responde-me com grande entusiasmo, com um tom que é como um abraço ao coração:
— Bom dia, meu rapaz!
— Tenha um ótimo dia e faça atenção aí na estrada, há muitos malucos por aí.
Com essas palavras queridas, repliquei:
— Que o senhor José e a sua irmã Matilde também tenham um excelente dia, repleto de alegrias e felicidades.
Segui viagem rumo ao trabalho, em direção ao Oriente, para os escritórios da Bosch — o meu novo lugar de labuta. No percurso, cruzei-me com alguns dos meus irmãos africanos: uns já limpavam as ruas de Lisboa, outros trocavam breves palavras antes da primeira martelada — a construir este país que, embora não seja nosso, guarda uma parte de nós. Às vezes, até o nosso sangue.
Saudei o homem que segurava um balde e uma vassoura:
— Bom dia, irmão!
— Tenha um ótimo dia!
Vi então um sorriso radiante a surgir entre os seus lábios e, com a mesma alegria, respondeu-me com as mesmas palavras. Os compatriotas junto ao estaleiro disseram o mesmo, e a reação foi semelhante.
Entretanto, uma pausa revelou-se necessária. Desci da bicicleta, respirei fundo e contemplei o horizonte ainda adormecido, a ponte Vasco da Gama suspensa sobre as águas cinzentas do Tejo. Guardei esse quadro na memória para que me sirva de bálsamo perante a brutalidade do mundo.
Já perto do Centro Comercial do Oriente, os grandes edifícios dos viventes erguem-se, empilhados uns sobre os outros. Os passantes são os mesmos, a esta hora matinal. Vejo a senhora que quase sempre traz o mesmo traje: um impermeável branco e uns ténis da Nike também brancos. O panorama pinta-se com folhas de diferentes cores, entre as árvores e sobre o chão. E ali está esse ser angelical, que me é estranho e, ao mesmo tempo, familiar.
Assim, meio adormecido no mundo da contemplação e da imaginação, cheguei ao escritório para mais um dia de labuta.
Que sentimentos despertam em ti as manhãs de Lisboa?
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Um Olhar sobre a Vida e a Eternidade
Um Olhar sobre a Vida e a Eternidade
Um Olhar sobre a Vida e a Eternidade é uma crónica poética sobre Lisboa ao amanhecer, um retrato do quotidiano lisboeta onde a vida, a morte e a espiritualidade se cruzam. Entre as ruas de pedra, o cemitério do Alto de São João e o brilho do Rio Tejo, o narrador reflete sobre a efemeridade da existência e o sentido da vida.
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11/4/20253 min ler
