Jonas Savimbi foi mesmo terrorista? A verdade que a ONU nunca disse
Investigação detalhada sobre o estatuto histórico e político de Jonas Savimbi. As resoluções da ONU nunca classificaram a UNITA como organização terrorista.
POLITICA
Por Paulo Muhongo


Nos últimos dias, Angola voltou a debater um tema sensível e ainda mal resolvido: Jonas Savimbi, o líder histórico da UNITA, foi mesmo um terrorista?
A discussão reacendeu-se depois de Bali Chionga, comentador da TPA-3, ter declarado que discorda da decisão do Presidente da República, João Lourenço, de condecorar Savimbi com a medalha dos 50 anos da Independência, afirmando que “a ONU atribuiu a Savimbi o estatuto de terrorista”.
Contudo, uma análise rigorosa de documentos oficiais e de fontes internacionais mostra que essa afirmação não corresponde aos factos.
O peso político do termo “terrorista”
O termo “terrorista” é, antes de tudo, um conceito político, e não apenas jurídico.
De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), terrorismo consiste em “atos destinados a causar morte ou ferimentos graves a civis, com o propósito de intimidar uma população ou obrigar um governo a agir de determinada forma”.
Mas a sua aplicação é altamente relativa.
O mesmo ato pode ser visto como terrorismo por uns e resistência legítima por outros.
Um exemplo atual é o caso do Hamas: considerado terrorista por Israel e Estados Unidos, mas visto por muitos árabes como movimento de libertação palestiniana.
Em contextos de guerra civil, essa relatividade é ainda mais acentuada — e Angola não foi exceção.
De “terrorista” a herói: o exemplo de Nelson Mandela
Tal como recorda a BBC News, Nelson Mandela foi considerado terrorista durante décadas por países como os Estados Unidos e o Reino Unido, por ter liderado a resistência armada contra o apartheid.
Mesmo após se tornar presidente da África do Sul, continuava oficialmente na lista norte-americana de terroristas até 2008.
Este exemplo mostra que a definição de terrorismo depende da agenda política de quem o rotula — e não necessariamente da natureza dos atos praticados.
Mandela lutava pela liberdade do seu povo; Savimbi, pelo poder e pela visão de uma Angola diferente.
Ambos foram rotulados; só um foi reabilitado.
O que dizem as resoluções da ONU
Ao contrário do que foi afirmado por Bali Chionga, a ONU nunca declarou formalmente a UNITA nem Jonas Savimbi como “terroristas”.
Os documentos oficiais das Nações Unidas referem-se à UNITA como “movimento rebelde” e “parte em conflito”, mas nunca como grupo terrorista.
As principais resoluções do Conselho de Segurança sobre Angola foram:
Resolução 864 (1993) — impôs um embargo de armas e combustível à UNITA;
Resolução 1127 (1997) — proibiu viagens de dirigentes da UNITA e encerrou escritórios no exterior;
Resolução 1173 (1998) — proibiu a compra de diamantes das zonas controladas pela UNITA (“diamantes de sangue”);
Resolução 1295 (2000) — criou um painel de peritos para monitorar violações das sanções.
Nenhum destes textos menciona o termo “terrorismo”.
A ONU censurava as violações dos acordos de paz, mas nunca classificou a UNITA como organização terrorista.
A versão de Ernesto Mulato e a narrativa do MPLA
No livro Do Bembe a Luanda…, o nacionalista Ernesto Mulato detalha como a diplomacia do MPLA influenciou a narrativa internacional sobre a UNITA.
Segundo o autor, a pressão política de Luanda junto à ONU foi decisiva para endurecer as sanções, transformando Savimbi no símbolo da resistência armada que “impedia a paz”.
Mulato recorda que o próprio Estado angolano também violava direitos humanos, mas raramente era sancionado.
Assim, construiu-se uma narrativa unilateral: a de que a guerra persistia apenas por culpa da UNITA.
A realidade, porém, era bem mais complexa — e ambos os lados cometeram excessos.
Um homem entre o heroísmo e a tragédia
Jonas Savimbi foi, ao mesmo tempo, um estratega político brilhante e um líder controverso.
Formado em Ciências Políticas em Lausanne e combatente contra o colonialismo português, sonhava com uma Angola plural.
Contudo, as décadas de guerra civil transformaram-no numa figura polarizadora.
Relatórios da Human Rights Watch e da Amnesty International apontam que tanto o MPLA quanto a UNITA cometeram crimes de guerra — execuções sumárias, recrutamento de crianças e ataques a civis.
Mas mesmo estes organismos nunca o classificaram como terrorista.
Savimbi não foi um santo.
Mas também não foi o demónio pintado pela propaganda.
O papel da imprensa e da memória nacional
É preocupante que, meio século após a independência, vozes com acesso à comunicação pública continuem a distorcer os factos históricos.
O dever da imprensa, sobretudo estatal, é informar com rigor, não repetir narrativas partidárias.
A Constituição da República de Angola (CRA) garante o direito à liberdade de expressão e à informação plural.
É tempo de colocar este princípio em prática e de permitir que a história nacional seja contada a partir de várias perspetivas, sem censura nem manipulação.
Entre o rótulo e a verdade
Savimbi foi um rebelde, não um terrorista.
A ONU nunca o classificou como tal; a história é que o julgou através de lentes políticas.
Negar-lhe esse reconhecimento histórico é negar também uma parte essencial da memória coletiva de Angola.
Se a reconciliação é, como se diz, um dos pilares da Angola moderna, então ela deve começar pela verdade.
Fontes consultadas
Resoluções do Conselho de Segurança da ONU sobre Angola (1993–2000)
Human Rights Watch – Angola Reports
Amnesty International – Angola
Ernesto Mulato, Do Bembe a Luanda… (Luanda, 2010)
Constituição da República de Angola – Artigo 40.º
Portal da ONU – Peace Agreements in Angola
“A história é escrita pelos vencedores. Mas o dever da verdade pertence aos que não se calam.”